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"Gente
de Dublin", de James Joyce, Amanhã na Colecção
Mil Folhas
Às vezes, as traduções
fazem com que os títulos deixem de ser fiéis
ao que realmente significam. É esse o caso de "Gente
de Dublin", do escritor irlandês James Joyce -
"Dubliners", no original. É que "Gente
de Dublin" é diferente (talvez substancialmente
diferente) de "Dubliners".
Se no primeiro se lê "conjunto de
pessoas, gente que vive em Dublin", no segundo, contudo,
lê-se caracteres-tipo, indivíduos feitos da mesma
massa, do mesmo sangue. Há algo que os une e algo que
os separa. Não são "apenas" homens
e mulheres que vivem na capital irlandesa. Longe disso. São
as mesmas origens, a mesma pobreza e o mesmo orgulho, os mesmos
sonhos e desalentos.
"Dubliners" é um conjunto
de quinze contos e foi escrito por James Joyce por volta de
1905, quando o escritor estava em Trieste a leccionar - é
o segundo livro do autor da obra-prima "Ulisses",
e também de "Retrato do Artista Quando Jovem"
ou "Finnegans Wake".
"A minha intenção foi a
de escrever um capítulo da história moral do
meu país e escolhi Dublin como cenário porque
a cidade me parecia o centro da paralisia. Tentei apresentá-la
ao público em quatro aspectos: infância, adolescência,
maturidade e vida pública", explicou Joyce. E
é exactamente assim que o livro se apresenta.
A "infância" é vista
pelos olhos de crianças: um miúdo a quem morre
o tutor ("Irmãs") ou rapazes que descobrem
os prazeres ilegais da vida - livros proibidos e raparigas
("Um encontro").
A juventude ou a puberdade estão em
"Eveline", a rapariga que olhava pela janela do
quarto e que queria mudar de vida; em "Dois conquistadores",
Corley e Lenehan, que se gabam das suas conquistas, ou em
"A pensão", em que Polly e o sr. Doran se
apaixonam sob o olhar reprovador da mãe desta.
Em "Camaradas" está a maturidade
deprimida de um empregado de escritório, como em "Uma
nuvenzita" está a vida pública estraçalhada
de Little Chandler - e "lágrimas de remorso começaram
a brotar-lhe dos olhos". Em "Um caso doloroso"
estão os primeiros prenúncios de uma velhice
pintalgada de solidão, como em "O morto"
está a crónica de uma morte anunciada.
O que há, então, em "Dubliners"?
Irlandeses ruivos bebem uísque de malte ao final da
tarde; meninas de convento ajudam as mães na cozinha;
putos reguilas jogam à bola do outro lado do rio; ruas
e mais ruas, numa cidade que parece enorme e, ao mesmo tempo,
minúscula, tal é a facilidade com que se sai
de Temple Bar e já se está no Ringsend.
Há também uma cidade suja e triste,
vestíbulos quentes e apertados, cheiro a mofo, ácaros,
vestidos de domingo, relógios de corda, álcool
entornado em tampos de mesas.
E há, sobretudo, um desalento - quem
é esta gente, unida por um mesmo espaço, um
mesmo tempo, a mesma classe? Parecem-se uns com os outros.
Os anos vão passando, eles vão crescendo e,
com eles, o desânimo, a infelicidade, a amargura acumulam-se
como o papel nas paredes, as fotografias da família,
a preto e branco, bolorentas. E o velho "dubliner"
já não é o mesmo - está a envelhecer.
Mas o rio continua, imponente, a correr
para longe daquela ilha, da Irlanda, a correr, quem sabe para
outra ilha, para Londres, quem sabe para o continente, Paris,
Berlim, para longe do "ramerrão" de Dublin
- para as "cidades imorais" com que sonha Little
Chandler.
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