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"O Outono em Pequim", de
Boris Vian
Por Diego Armés dos Santos
Uma história viva,
vigorosa, caótica e difícil
de acompanhar, em que personagens absurdas se encontram num
cenário onde reinam o ilógico, o improvável
e o pouco credível
Primeira advertência: disse Raymond Queneau que Boris
Vian "escreveu livros belos, estranhos e patéticos".
A observação de Queneau não peca por
injusta. Poderá pecar, quando muito, por "patético" ser
um adjectivo demasiadamente pejorativo para classificar "O
Outono em Pequim", que não deixa de ser uma obra bela,
estranha e, isso sim, absurda e disparatada.
Comecemos pelo título: "O Outono em Pequim" chama-se
assim porque sim. Não é Outono nem é em
Pequim. A história acontece debaixo de um sol absurdamente
estranho no improvável deserto da Exopotâmia
- nome que encerra na sua origem etimológica uma possível
definição de "deserto"; Vian tem por hábito
brincar com os conceitos. Contudo, a utilização
do "título arbitrário" não é uma
ideia originalmente sua, mas uma herança de Alphonse
Allais, que havia escrito, por exemplo, "Um Guarda-Chuva
na Esquadra", sem que existissem na narrativa nem o guarda-chuva
nem a esquadra.
Quanto ao enredo - não só desta obra mas também
de "A Espuma dos Dias" ou de "Arranca-Corações",
entre outros -, Boris Vian parece inspirar-se na criação
de autores como Nikolai Gogol, por exemplo, registando uma
observação da realidade mundana sob uma perspectiva
distorcida. Talvez este seja um sintoma do inconformismo
do autor em relação à sociedade e, em
particular, em relação à literatura
e à crítica dos seus tempos. Aliás, é o
próprio que, quando acusado pela mesma crítica
de ter um estilo "desleixado" e de abusar da oralidade, responde
o seguinte: "(...) As coisas não são vulgares
por serem escritas assim. As pessoas é que são
vulgares, não o estilo. E digam lá! As pessoas
realmente vulgares nem escrevem assim. Cuidam dos floreados
que é uma chatice. Escrevem com lâmpadas no
rabo (...)."
Segunda advertência: uma reacção provável
do leitor após a absorção de algumas
páginas de "O Outono em Pequim" será pensar "mas
o que é que passou pela cabeça deste homem
para ele escrever isto?!". A verdade é que pela cabeça
deste homem passavam demasiadas coisas. Em primeiro lugar,
Boris Vian não era "apenas" um escritor. De trompetista
de bandas jazz - a sua grande paixão - a engenheiro,
de inventor a cenarista, de actor a tradutor, Vian era uma
fonte inesgotável de energia e criatividade. No seu
curto tempo de vida (morreu com apenas 39 anos) experimentou
um pouco de tudo o que lhe apeteceu. Esta vitalidade, esta
vontade de viver, reflectem-se na sua escrita impulsiva e
ciclónica, emaranhada em enredos caóticos e
sem sequência lógica aparente.
Vian foge às
regras
Em "O Outono em Pequim", Vian consegue ir dos extremos
do hilariante ao cúmulo da náusea, do fundo do
romântico ao pico do sexual e do perverso. As ideias
despontam a cada linha, os diálogos, com ou sem nexo,
surgem sem deixar qualquer tipo de consequência. Boris
Vian não segue as regras do "contador de histórias".
Escreve o que lhe apetece, quando lhe apetece e porque lhe
apetece. A escrita é um impulso: "Ando aflito para
escrever histórias. E todas estas são muito
pouco. (...) Não tenho mãos que cheguem." Mas
não se pense que este livro é feito apenas
de caos e disparate, dispostos aleatoriamente ao longo das
páginas.
Em "O Outono em Pequim" existem componentes tão "extravagantes" como
a sensibilidade ou o romantismo. Numa das passagens mais
belas do livro, os engenheiros Ana e Ângelo falam sobre
Rochela, por quem ambos são apaixonados, embora apenas
o primeiro seja correspondido. Num "estranho" acesso de lucidez,
o autor constrói um delicado diálogo entre
os dois homens, falando sobre o amor, como desejo e como
impossibilidade; estabelece uma fronteira frágil entre
o egoísmo machista e o bom senso; e faz, com a personagem
de Ângelo, uma apologia do amor platónico.
Terceira advertência: a trama e as personagens de "O
Outono em Pequim", por mais surreais que aparentem ser, nascem
do universo real de Boris Vian. Por exemplo, o eremita Cláudio
Leão (Claude Léon), um conformista que acaba
por revoltar-se e matar outro conformista antes do retiro
definitivo, é, na vida real, amigo e colega de trabalho
do autor. Léon considerava Vian um insubordinado...
Outro exemplo: Ursus Jampolã é o nome atribuído
a outra personagem, numa sátira ao membro da Academia
Francesa Jean Paulhan.
A história principal - a construção
de uma linha férrea inútil no meio do deserto
da Exopotâmia - é uma deliciosa desconstrução
das relações sociais, onde o exercício
do poder é gratuito e o bom senso e a honestidade
são menosprezados, a burocracia é frequentemente
aludida e as ideologias ocas transparecem dos diálogos,
tornando-os absurdos. Ou seja, a despreocupação
de Vian em relação à forma não
corresponde, de todo, ao cuidado com que o autor trata o
conteúdo, mesmo que este pareça a criação
de um louco.
Advertência final: talvez
a escrita de Boris Vian não seja assim tão
estranha, absurda, caótica
e disparatada quanto isso. Talvez os seus escritos sejam
apenas o resultado do seu estranho mundo, difícil
de compreender e de interiorizar. Desabafou o próprio
Vian: "Tentei contar às pessoas umas histórias
que elas nunca tivessem ouvido contar. Parvoíce pura,
parvoíce dupla - só gostam do que já conhecem."
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