“O Túnel”, de Ernesto Sábato

Sábato escreve uma obra existencialista de grande suavidade narrativa, que não abdica de uma singularidade própria do génio literário argentino, elevado à condição de mito universal por escritores como Borges Cortázar e o próprio autor de “O Túnel”

Por Eduardo Dâmaso

O ano de 1943 é decisivo na vida de Ernesto Sábato. O mundo rasgava todas as suas entranhas com a devastação da II Guerra Mundial e Sábato atravessava uma crise existencial que resultava do antagonismo profundo entre a sua formação de homem da ciência (doutorou-se em Física) e uma consciência aguda da degradação moral da condição humana, que o levou a estudar também filosofia. Chega mesmo a pensar suicidar-se, mas acaba antes a pôr fim à sua condição de cientista e a dedicar-se em definitivo às artes das letras e da pintura, o que acontece plenamente dois anos depois.

O trabalho de Ernesto Sábato enquanto cientista, que o levara da Argentina a Paris, onde realizou trabalhos de investigação sobre radiações atómicas no Laboratório Juliot- Curie, e daí aos EUA, depois do início da guerra, coloca-o numa posição privilegiada para reflectir sobre a aplicação dos avanços da ciência ao aparato bélico do conflito que dilacerava a Europa. A ciência, que tanto amara como dedicação essencial da sua vida, servia o mal e não o bem.

Todo um mundo que fascinara o adolescente Sábato acaba ruir e ele rende-se às mãos de uma consciência artística e de uma inquietação filosófica que são sobretudo o resultado dos contactos que mantivera antes, em Paris, com o movimento surrealista.

Influenciado pelos surrealistas
A capital francesa é, de resto, o palco de alguns dos acontecimentos mais decisivos na vida de Sábato. É em Paris que rompe, no ano de 1935, com o comunismo, quando conhece em detalhe as perseguições estalinistas aos dissidentes do regime soviético. Quatro anos depois, em 1939 e também em Paris, situa-se uma das mais impressivas experiências da sua vida, ao mesmo tempo uma espécie de ruptura interior que viria a funcionar como catalisador da metamorfose protagonizada em Ernesto Sábato e que foi decisiva em toda a sua carreira literária. É nessa altura que tem um contacto próximo com os surrealistas, o que lhe suscita o gosto pela pintura e pela literatura, que representam também para o escritor os instrumentos de demolição de uma moralidade neutral da ciência da época, herdada do século XIX.

A partir daí, Sábato nunca mais foi o mesmo e abandonou tudo o que poderia ter feito dele um actor dessa moralidade neutral da ciência face às tragédias que abalavam o planeta, para passar a lutar por conquistar uma voz que fizesse da sua vida um grito de resistência contra a ignomínia ou, noutro plano, uma busca existencial do sentido da vida.

É desse conflito interior entre a consideração da ciência enquanto conhecimento inapelavelmente tomado pela lógica do mal e a arte e a escrita enquanto linguagens e espelhos de exposição do absurdo humano que nasce “O Túnel”, publicado em 1948. Este livro é uma síntese admirável da relação entre o amor e a morte, entre a saudade e os caminhos sem regresso do absurdo e da loucura.

Escritor de luz e sombras
Antes, em 1945, com a derrota de Hitler à vista, publicara o seu primeiro livro de ensaios, “Uno y el Universo”, em que se confronta de modo radical com o fetichismo tecnológico nascente, com a ciência e o racionalismo. Mas é com “O Túnel” que a singularidade da sua voz ressoa pelo mundo da literatura, anunciando uma vastíssima obra sucessivamente consolidada com outras livros, em particular “Heróis e Túmulos”, de 1961.

“O Túnel” tem uma estrutura de romance policial, mas apenas porque há uma morte e uma confissão. Ou melhor: porque há uma indagação obsessiva sobre os sentimentos, que vai da dimensão compulsiva da paixão à devastação do ciúme e da posse.

O essencial de “O Túnel” é uma profunda viagem pelas incongruências do amor, pelo abandono, pela solidão, pelo desespero da incompreensão, pela incomunicabilidade humana. Mas, ao contrário do que possa parecer, não é uma incursão limitada ao espaço claustrofóbico do absurdo sartriano. Pelo contrário, é um caminho que se toma embalado por uma escrita extraída de uma melancolia suave e, em momentos de grande êxtase criativo, iluminada pela grandiosidade metafórica da poesia.

Juan Pablo Castel, principal personagem do livro, é em si a representação perfeita dessa oscilação entre a luz e as sombras que é uma das principais características da obra de Sábato. Pintor consagrado, Juan Pablo Castel é um personagem atravessado pela luminosidade de uma profunda sensibilidade estética, mas também pelas trevas de uma inquietação irascível sobre a vida e o seu valor, que vê meramente como uma série de gritos anónimos num deserto de astros indiferentes.

A sua apresentação, aliás, feita nas primeiras três linhas do romance, deixa poucas dúvida sobre a natureza da história que vamos ler e do personagem que vamos encontrar: “Sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou Maria Iribarne. Suponho que todos se recordam do processo e que não preciso de dar mais explicações sobre mim.” E apesar da tormenta anunciada, Sábato escreve uma obra existencialista de grande suavidade narrativa, que não abdica de uma singularidade própria do génio literário argentino, elevado à condição de mito universal por escritores como Borges Cortázar e o próprio autor de “O Túnel”.

    
   

 
Ernesto Sábato