Em busca do tempo perdido

São quase 600 páginas de pura literatura de um escritor inglês que viveu quas 100 anos - um nome esquecido no pó das estantes. Quem quer hoje ler Somerset Maugham? "Há apenas duas coisas no mundo da capazes de tornar a vida digna de ser vivida - o amor e a arte", escreveu. Ler os seus livros também é uma delas

Raquel Ribeiro

Somerset Maugham é um escritor injustamente esquecido. Já ninguém pára diante dele na montra de uma livraria, nem mesmo na prateleira - como se não existisse. Desapareceu com o tempo, no pó das estantes, afogado de si mesmo nos rios de palavras que escreveu. Hoje será talvez "datado". Mas, há 30 anos, lia-se Maugham como se lia Huxley, ou como hoje se volta a ler Dostoiévski, Púchkin ou Tchékov - a redescoberta dos russos.

As suas referências, disse sempre, foram Poe, Maupassant, Tchékov ou Kipling - outro escritor desaparecido com o tempo. Maugham era um exímio escritor de contos, um técnico do romance, um crítico social, um exemplar dramaturgo.

"Escrever uma história segundo os princípios de Poe não é tão fácil como se pensa. Requer inteligência, não superior, mas especial. Requer um sentido da forma e pouco poder de invenção", disse Maugham sobre Edgar Allan Poe. Ou seja, para Maugham, a história é mais forma do que conteúdo. E talvez seja verdade se pensarmos nele como um perfeccionista, que escreve a palavra certa no sítio certo. Consegue ser cru, exacto, frio, mas também poético e romântico. Tocar as amarguras, as tristezas, as pequenas alegrias e a plenitude.

Mas quem quer hoje ler Somerset Maugham? Quase ninguém. Grande parte da sua obra está traduzida para português mas já não é reeditada. Também ela está a desaparecer nas estantes, ávidas de novidades editoriais, capas coloridas e literatura "pop". Haverá ainda alguém com paciência para perder longas horas dedicadas a conhecer um personagem, a fundo, como se ele fosse um fantasma na nossa própria casa? Paciência para se emaranhar em palavras atrás de palavras, diálogos cortados por comentários, capítulos que se seguem (do I ao CXXII) separados por parágrafos, texto a correr quase sem interrupções? No caso de "Servidão Humana", são quase 600 páginas de pura literatura. Um desafio.

A paixão do futuro: o amor e a arte
"O dia rompera cinzento e triste. As nuvens pairavam, pesadas, e havia no ar certa aspereza que era uma promessa de neve." Há um prenúncio de infortúnio no primeiro parágrafo de "Servidão Humana". Não é por acaso: este é um livro duro.

Philip, o herói, era ainda uma criança quando morreram os pais e foi viver com os tios para uma pequena aldeia no campo inglês. Chuvosa e triste. O tio era padre. A tia, uma mulher marcada pelo tempo que dedicou a vida a servir o marido. À semelhança de Philip, também Maugham perdeu os pais aos dez anos e ficou ao cuidado de um tio padre, em Inglaterra. E, tal como Philip, estudou na Alemanha e em Londres. Por isso, diz-se que "Servidão Humana" é também um livro autobiográfico.

Philip tem pé boto, uma deficiência que o impediu de ser como as outras crianças. Às vezes, a história corre tão simples que nos esquecemos dessa deficiência que torna o nosso herói grotesco aos olhos dos outros, que o impede de ser feliz, de se apaixonar. Mas logo surgem palavras de raiva que nos lembram essa trágica fatalidade.

Uma noite, pede a Deus que lhe cure a doença. Na manhã seguinte, a fé prega-lhe uma partida. "Não compreendo por que se deva acreditar em Deus", diz. "Mal as palavras lhe saíram da boca, concluiu que já não tinha fé. Perdeu o fôlego de repente, como se tivesse mergulhado em água fria", explica Maugham.

Desistiu então de ser padre: "Não posso permanecer aqui por muito mais tempo. Quero ir para Londres e iniciar a vida de verdade. Quero ter aventuras. Estou cansado de me preparar para a vida: quero vivê-la agora." Vai para Londres, mas desiste de ser contabilista e escolhe a pintura por vocação, em Paris, onde descobre a vida boémia. Mas o mestre diz-lhe: "Não vejo talento em nada do que me mostrou. Vejo indústria e inteligência. Nunca passará de medíocre." Philip chora com a crueza da revelação. Talvez seja melhor assim. Talvez seja melhor mudar e regressar a Londres. Estudar outra coisa qualquer, algo que o faça feliz. Porque, no fundo, é isso que ele procura.

Conhece Mildred. Apaixona-se. "Duas vezes aquela mulher entrara na sua vida para fazê-lo infeliz."

- Queres casar comigo ou não?

- Achas que seríamos felizes?

- Não. Mas que importância tem isso?

Quis viajar por Espanha - "agora já estava imbuído do seu espírito, da sua cor e encanto, da sua história e grandeza". Pela China, pela Birmânia - "um médico era útil em toda a parte". Quis deixar Londres - outra vez, tantas vezes - e começar de novo. Noutro sítio. Construir o futuro, esquecer o passado, a ausência de afecto, as dúvidas; esquecer aqueles que o traíram, que o magoaram, que o amaram demais e que ele foi incapaz de tocar. Esquecer Deus e todo o seu poder. "Há apenas duas coisas no mundo capazes de tornar a vida digna de ser vivida - o amor e a arte." Philip procurou ambas. Talvez não tenha encontrado nenhuma. "Vivera constantemente no futuro e o presente sempre lhe fugira por entre os dedos", escreve Maugham. "Parecia que toda a sua vida aspirara às ideias que outros, com as suas palavras e escritos, tinham inculcado nele, e nunca seguira o desejo do seu próprio coração."

    
   

 
Somerset W. Maugham