“O Doente Inglês”, de Michael Ondaatje

Sente-se com este livro nas mãos e faça como Michael Ondaatje quando começou a escrevê-lo. Tente descobrir quem são as personagens e que história era aquela

Por Isabel Salema

Não vale a pena procurar página atrás de página a personagem desempenhada no filme pela actriz Kristin Scott-Thomas — só vai encontrar Juliette Binoche, mais Juliette Binoche, mais Juliette Binoche. Quem chega ao livro “O Doente Inglês”, de Michael Ondaatje, através do filme “O Paciente Inglês”, de Anthony Minghella, tem que reorganizar a sua geografia dos personagens.

A advertência vale a pena, porque o enorme êxito do livro do escritor canadiano Ondaatje deve-se ao filme ter ganho nove Óscares da Academia de Hollywood (isto, apesar do livro ter recebido em 1992, antes da adaptação para cinema, o mais importante prémio literário inglês, o Booker Prize). “Esperava o pior, mas tive muita sorte”, disse numa entrevista Michael Ondaatje sobre o filme, cuja rodagem acompanhou de perto.

O centro do livro de Ondaatje não é a paixão exótica entre Katharine Clifton e o doente inglês, mas o quotidiano de quatro pessoas à procura da sua identidade no último ano da Segunda Guerra Mundial. Hana, a enfermeira canadiana, Almásy, o doente inglês, Caravaggio, o ladrão, e Kip, o sapador indiano. Os quatro encontramse numa “villa” da Toscana, às portas de Florença. “Quatro pessoas, cada qual com os seus íntimos gestos, momentaneamente iluminadas, ironicamente projectadas contra o pano de fundo desta guerra.” (p. 299)

Na origem do livro não estiveram personagens com um nome e uma história, mas três imagens que o escritor não sabia como ligar. Uma delas era a de um homem que estava a roubar uma fotografia de si próprio.

“O Doente Inglês” começou logo, portanto, por ser um livro sobre a identidade. Para além do ladrão, as outras duas imagens eram as de uma enfermeira e um doente.

“Não, o enredo não estava lá até o livro estar provavelmente acabado. Não começo um romance com um sentido claro do que está a acontecer ou vai acontecer. Almásy não estava na história na minha cabeça. Kip não estava na história. Caravaggio não estava na história. Começou com este desastre de avião e continuou a partir daí.”

Depois, Ondaatje interrogou-se porque é que o avião se despenhou. E as outras perguntas que fez são as mesmas que o leitor é levado a fazer: quem é o doente inglês? Quando é que aconteceu o desastre? “Todas essas coisas tiveram que ser descobertas e desenterradas.”

Muita da pesquisa para este livro, Michael Ondaatje fê-la nos arquivos da Sociedade de Geografia de Londres, a quem o escritor agradece por lhe ter permitido — diz no livro — “respigar dos seus ‘Geographical Journals’ o mundo dos exploradores e das suas viagens”.

Foi aí que recolheu informação sobre o deserto da Líbia na década de 30: sobre as tempestades de areia, sobre as explorações de Almásy. Mas houve também investigação sobre bombas, sobre ventos, sobre “villas” italianas, sobre enfermeiras canadianas, sobre tropas indianas.

Muitas leituras, muitos outros livros, como o de Heródoto, considerado o primeiro historiador do mundo, o “pai da História”. É esse o livro que acompanha o doente inglês, o homem que não se lembra quem é.

    
   

 
Michael Ondaatje