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Como é que se
sai da Segunda Guerra Mundial?
Há muitos livros dentro deste livro.
Não é uma metáfora. É um jogo
entre o escritor e leitor, entre a enfermeira e o doente ingçês,
entre Kip e Caravaggio, entre todos. São quatro personagens
à procura de uma identidade, de uma maneira de sair
de Segunda Guerra Mundial.
Por Isabel Salema
"Há também o _______".
Este é um dos espaços em branco, enigmas e mistérios
do livro "O Doente Inglês", escrito por Michael
Ondaatje em 1992 e que ganhou o Booker Prize. São coisas
que foram enterradas ou apagadas, como o vento secreto do
deserto, cujo nome foi banido por um rei antigo e não
pode voltar a ser escrito, ou a memória de um piloto
queimado pelo fogo, cuja identidade foi esquecida e a quem
chamam o doente inglês. Sabemos depois que o desastre
de avião do inglês ocorreu no deserto libanês
em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial - "caí
a arder no deserto".
É este o jogo que o escritor canadiano
estabelece com o leitor, apresentando um mistério -
a busca da identidade do doente - que no fim do livro não
sabemos se está resolvido. Novamente, obrigando-nos
a fazer a mesma pergunta feita nas primeiras páginas
pela voz de uma das quatro personagens principais que se encontram
em Itália, nos arredores de Florença, no final
da guerra.
- Quem é você?
- Não sei. Está-me sempre a perguntar
isso.
- Você disse que era inglês.
Ondaatje quer que bocados do livro dialoguem
sem ordem, num movimento que ele acredita ultrapassar o escritor,
num gesto que pertence ao leitor. É o que faz Hana,
a enfermeira de 20 anos, também ela leitora como nós,
também ela canadiana como o escritor, que ficou sozinha
numa "villa" da Toscânia, enquanto os Aliados
avançavam para norte, para tratar do doente irreconhecível,
que ficou sem nervos, sem pele, cor do ébano, e que
estava a morrer.
Hana lê em alto para o doente inglês,
mas rouba-lhe partes da história, como Ondaatje nos
faz: "Os livros, para o inglês, quer ele escutasse
ou não atentamente, tinham hiatos no enredo. [...]
Se ele porventura adormecia, ela continuava a ler, sem nunca
erguer os olhos. [...] Se ele perdera a última hora
do enredo, era apenas um quarto escuro numa história
provavelmente já sua conhecida."
Traições de guerra
Hana lia livros retirados da biblioteca da "villa",
minada pelos alemães antes da retirada. "Entrou
na história sabendo que sairia dela com a sensação
de ter estado imersa noutras vidas que não a sua",
a última vida onde ela queria estar. Saía com
"o corpo cheio de frases e momentos", devolvendo
depois outras frases, escritas por ela, aos livros da biblioteca,
como a que deixou numa página em branco de "O
Último dos Moicanos" sobre a terceira pessoa que
chegou à Villa San Girolamo, o ladrão-espião
David Caravaggio: "Há um homem chamado Caravaggio,
amigo do meu pai. Eu sempre o adorei. É mais velho
do que eu, acho que deve ter uns quarenta e cinco anos. Está
a viver um tempo de trevas, perdeu a confiança. Não
sei porquê, este amigo do meu pai resolveu cuidar de
mim."
O doente inglês tem também o seu
livro de fragmentos, uma edição de 1890 das
"Histórias" de Heródoto, o grego do
século V a.C. considerado o "pai da história"
e que fala detalhadamente do deserto: "ele foi fazendo
acrescentos, recortando e colando páginas de outros
livros ou anotando as suas próprias observações
- de modo que todos se aninham dentro do texto de Heródoto".
Com Hana, o inglês fala longamente, "fragmentos
soltos a respeito dos oásis, dos últimos Médicis,
do estilo da prosa de Kipling, da mulher que o mordeu na carne".
Do livro de Heródoto, sai de lá este bocado
de diário em Julho de 1936: "Certas traições,
na guerra, são pueris comparadas com as nossas traições
em tempo de paz."
Hana tem agora novo mistério: "quem
é ela, quem é essa mulher" que lhe mordeu
a carne? Só a meio do livro, poucas páginas
depois da pergunta, é que há um capítulo
intitulado Katharine, a mulher de Geoffrey Clifton e a amante
do doente inglês. Clifton, diz Caravaggio ao doente
inglês no final, é um espião dos serviços
secretos britânicos e não apenas um aristocrata
benemérito.
É aqui que o doente inglês assume,
na primeira pessoa, a sua identidade, depois de Caravaggio
insistir que ele é o conde húngaro Ladislaus
de Almásy (e que trabalhou para os alemães durante
a guerra). Páginas antes, o conde descrevia Katharine
como uma mulher classista, snobe e distante. "De quem
é esta voz que agora fala?, pensa Caravaggio".
O mesmo pensamos nós. Talvez o doente inglês
tenha mergulhado noutra ficção. Mais à
frente, com os outros habitantes da casa, ele volta a ser
o doente inglês.
A última personagem a aparecer na "villa"
é o sapador indiano "sikh", cuja função
é desarmar bombas: Kirpal Singh, ou Kip, que parecia
saído das páginas de "Kim", de Rudyard
Kipling, um dos livros da biblioteca. É o namorado
de Hana, o outro par do livro, que abandona a "villa"
depois da bomba atómica ter sido lançada sobre
Hiroshima, porque os Aliados nunca teriam lançado uma
bomba dessas sobre uma nação branca.
Há muitos livros, escreve-se a certa
altura, que "começam com uma garantia de ordem
da parte do autor", mas "os romances começam
com a hesitação ou o caos" e os leitores
não têm "um instante de sossego". Este
livro, disse o autor numa entrevista, partiu de três
imagens que Ondaatje não sabia como ligar. O final
é estranho, porque era difícil acabar este livro,
explicou o autor. Não é fácil sair da
Segunda Guerra Mundial.
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