"Os Jardins de Luz", de Amin Maalouf

Ocidente, Oriente

Por Raquel Ribeiro

Assim se contam as lendas: "Era uma vez uma rainha consumida por um mal que nenhum remédio conseguia curar. Queixou-se um dia à irmã, que lhe [falou ] dos prodígios de um médico do país de Babel. A rainha exprimiu o seu ardente desejo de o conhecer, e nessa mesma noite, enquanto dormia, viu a imagem dele e ouviu a sua voz. Ao acordar, estava curada. E convertida."

Há um homem do país de Babel que, no século II da era cristã, veio ao mundo lançar o grito da tolerância, da justiça, do humanismo - Mani, o médico profeta, visionário, fundador do "maniqueísmo", religião conciliadora de todas as religiões, numa comunhão pacífica de identidades e crenças.

"Os Jardins de Luz" (1991), quarto romance do escritor libanês Amin Maalouf, narra a vida de Mani. A sua religião "maniqueísta" (de onde derivam palavras como "maniqueu", "maníaco", "maniqueísta", hoje com um significado completamente diferente) disseminou-se um pouco por todo o Oriente. Com a morte de Mani ("o Buda de Luz"), a perseguição aos seus devotos foi feroz e todas as suas imagens, escritos e registos foram apagados da História. Como se nunca tivessem existido. "Da sua fé generosa, da sua demanda apaixonada, da sua mensagem de harmonia entre os homens, a natureza e a divindade, já nada resta", escreve Maalouf.

Do Tigre ao Indo, na vizinhança dos reis

Antiga Babilónia. No palmeiral dos fatos-brancos, homens viviam resguardados num espaço-tempo onde o "canal do Tigre serpenteava no meio de um renque de palmeiras" e "o tempo não passava de um rosário de obrigações". Privações, penitências e proibições coagiam os devotos a depender dos interditos da religião - "o que é fêmea é interdito, o que é interdito é fêmea."

Mas Mani não aguentará muito tempo as imposições do palmeiral. "Vim do país de Babel, para ecoar um grito através do mundo", disse. E o grito revela-se aparição, nas margens do Tigre, quando Mani se confronta com a imagem do seu "gémeo", o oráculo que lhe anunciará a verdade e o caminho a trilhar. Revelação que o fará abandonar o palmeiral e, do Tigre ao Indo, divulgar a sua religião.

Sapor, o rei dos reis, abraça o "maniqueísmo" como a fé nova do império Sassânida. "Juntos podemos construir neste mundo o que ninguém pôde construir antes", diz. Ctesifonte torna-se a cidade-berço da religião e, na vizinhança dos reis, a Mani é permitida a divulgação da palavra de tolerância, a peregrinação pelo Oriente, na harmonia da conciliação religiosa.

As multidões seguem-no. Os jardins são escassos para aqueles que querem ouvi-lo. Sapor regozija de prosperidade. Os rancores multiplicam-se na corte. Inimigos florescem a cada esquina, preparando o ardil. "A minha esperança chegou ao oriente do mundo e a todos os sítios da terra habitada."

Humilhado, torturado em praça pública, morreu após 26 dias de agonia no banimento a que foi condenado. Quase mártir, quase crucificado. Aos seus discípulos chamavam "os filhos da luz". "O que em mim eram trevas juntar-se-á de novo às trevas, o que em mim era luz permanecerá luz", sussurrou na hora da morte. Quase 20 séculos após o seu desaparecimento, o que resta ainda desse rosto que nunca vimos?

A nostalgia da História

Em "O Périplo de Baldassare", o mais recente romance de Amin Maalouf, lê-se: "A pura coragem é afrontar o mundo, defender-se dos seus assaltos e morrer de pé." A mensagem de Baldassare é a mesma de Mani. Peregrinos, mártires, homens errantes na nostalgia da História - assim são os personagens de Maalouf. Mas também ele é um peregrino, um pêndulo entre o Islão e o Cristianismo, a tradição e a modernidade. "Os Jardins de Luz" é, por isso, um ajuste de contas entre esses dois destinos, entre o Ocidente e o Oriente: Maalouf e Mani.

Maalouf nasceu no Líbano, mas a guerra civil, em 1975, obrigou-o a exilar-se em Paris. "Tenho hoje o sentimento de ter atrás de mim uma série de casas abandonadas e de países perdidos", disse um dia. É o peso do mundo e da história nos seus ombros que o faz percorrer as estradas da memória para tentar construir tudo de novo: os seus romances são essa súmula, esse esforço errante de compreender a História para viver o presente. Chamam-lhe o "homem-ponte".

"De quem era herdeiro? De Roma ou de Cartago? Tinha laços nas duas margens do Mediterrâneo. De um lado Constantinopla, o esplendor bizantino, e Roma", escreveu Maalouf no PÚBLICO, em 1995. "E pronto, quando o Líbano entrou em guerra, Paris."

Oriente, Ocidente. Árabes e Cristãos. Guerra e sangue - a História. Porquê tudo isto? "A guerra do Líbano é para mim uma ferida original, a razão dos meus escritos", disse numa entrevista.

O que resta, então? "Ensinaram aos homens que deviam pertencer a uma crença como se pertence a uma raça ou a uma tribo. Mentiram-vos", diz Mani. Porque os homens constróem a sua própria liberdade, conquistam os seus sonhos, vencem os medos, destróem os mitos. "Este sopro de tolerância era o de Mani." Mas este também é o sopro de Maalouf.

    
   

 
Amin Maalouf