“O esforço do romancista
é fazer descer a música até à página”

O autor da “Trilogia de Nova Iorque” – que hoje publicamos na Colecção Mil Folhas – diz que é demasiado cedo para pôr o 11 de Setembro num romance. Fora da ficção, escreveu sobre os atentados e esperou que a América reflectisse sobre si própria. Dois anos depois, acha que a América nunca esteve tão mal.

Por Alexandra Lucas Coelho

Em Nova Iorque, chovia torrencialmente. Eram nove da noite, três noites antes do “apagão”. Paul Auster estava na sua casa de Brooklyn, o bairro onde vive há mais de 20 anos. Foi lá que nasceu “A Trilogia de Nova Iorque”, que reúne os seus primeiros romances. Foram saindo a um ritmo anual, entre 1985 e 1987: “A Cidade de Vidro”, “Fantasmas” e “O Quarto Fechado”.

O terceiro é o mais autobiográfico que Paul Auster já escreveu, diz ele, nesta entrevista. É o livro que contém os outros dois, variante última de uma aparente história de detectives. Um homem que persegue outro homem e que nessa perseguição se afunda até desaparecer – para uma outra vida?

No primeiro livro esse homem chama-se Quinn. No segundo, Blue. No terceiro é “eu”, um narrador sem nome que busca um escritor com nome de livro, como uma sombra, um espelho, um duplo – ambos, perseguidor e perseguido, por sua vez duplos do autor, diz o autor.

A vida é uma corda. Ata-se e desata-se.

Uma hora de conversa entre Lisboa e Nova Iorque ao telefone, que acabou com Paul Auster a dizer que reza para Bush cair.
Costuma contar que o clique para escrever “A Cidade de Vidro” foi um telefonema de alguém à procura da Agência de Detectives Pinkerton. O que é que aconteceu ao certo?

Em 1980, eu estava em casa, em Brooklyn, a trabalhar no meu primeiro livro de prosa, “A Solidão Reinventada”. O telefone tocou, eu atendi, e a pessoa do outro lado disse: “É da Agência Pinkerton?”

A Pinkerton é uma agência de detectives muito famosa nos Estados Unidos – Dashiell Hammett, o escritor de policiais, costumava trabalhar para os Pinkertons, quando era jovem.
Fui apanhado desprevenido e respondi: “Não, não. Tem o número errado.” E desliguei. No dia seguinte, estava de novo à secretária, por volta da mesma hora o telefone tocou e de novo o mesmo homem fez a mesma pergunta: “É da Agência Pinkerton?” E de novo eu disse: “Não.” Depois de ter desligado essa segunda vez, pensei: “Porque fiz isto? Foi estúpido, devia ter dito que sim, tentado saber mais sobre o caso em que este homem estava envolvido. Poderia ter levado a alguma aventura louca...”

E Estes dois telefonemas fervilharam na minha mente nos dois meses seguintes e geraram a ideia para “A Cidade de Vidro”, que começa, claro, não com dois mas três telefonemas. Quando o terceiro telefonema chega, Quinn [o protagonista] diz: “Sim, eu sou o detective Paul Auster.” E aceita o caso.

Penso que todo o livro foi determinado por esses telefonemas. Tinha de ser uma história de detectives. Mas sobre um detective que não era um detective...

Há um clique que lhe dá o princípio do livro. E depois? Começa a escrever como uma luta no escuro ou planeia tudo cuidadosamente?

Sempre que escrevo um romance tenho uma ideia bastante clara do que quero fazer, uma espécie de mapa na cabeça, uma ideia do princípio, do meio e do fim. Quando entro na escrita, claro que continuo a fazer descobertas e as coisas mudam – mas tenho de facto uma ideia do livro como um todo, uma noção do que é a música na minha cabeça. Há um ritmo, uma música que se impõe. E o esforço do romancista é fazer descer essa música até à página. Portanto, quando fazemos um erro, sabemos. Quando está bem, sabemos. Enquanto nos mantivermos fiéis a esse impulso original, podemos fazer o livro.

A personagem do autor Paul Auster está no livro desde o princípio. Há um momento em que Quinn o conhece, conversam sobre Dom Quixote, Auster não o ajuda muito... Tudo isto é auto- irónico, claro, mas apenas isso? O que é que o autor Paul Auster está a fazer dentro do livro?

Bem, várias coisas. Tenho de dizer que todas as opiniões que Auster exprime sobre Dom Quixote são o exacto oposto do que realmente penso... Estava a tentar troçar de mim próprio. Ele diz que o único objectivo de um livro é entreter as pessoas... eu não acredito nisso de todo, penso que os livros são experiências muito mais profundas, ou podiam ser, ou devem ser.

Depois, sempre me interessou este cisma entre autor-enquanto- escritor e autor-enquanto-pessoa. Pegamos num livro que diz “Guerra e Paz”, por Leo Tolstoi, abrimo-lo, alguém está falar connosco. É Leo Tolstoi? Não verdadeiramente. É o autor Leo Tolstoi. O Leo Tolstoi que tinha uma mulher e filhos e cuidava do seu quotidiano não é a pessoa que está a contar a história. Então, quis tirar um nome que estava na capa do livro, o meu, pô-lo dentro do livro e ver o que acontecia. Foi uma estranha aventura, devo dizer... E Siri [Hustvedt], a minha mulher, quando leu o livro...

Ela também aparece... Há aquele momento em que Quinn lhe aperta a mão... e ela é muito alta e magra, tem mãos muito estreitas, e eu descrevo os ossos das mãos dela... Quando leu o livro, disse: “Foi como apertar a mão a mim mesma.” Foi uma experiência muito estranha para ela.

E a sua própria experiência, enquanto escrevia? Bem, não sou realmente eu [no livro]. É alguém com o meu nome, que se parece comigo, mas outra pessoa, completamente. Não iria mais longe.

A sua mulher e o seu filho Daniel aparecem com os seus próprios nomes. E disse algures que “A Cidade de Vidro” era uma carta de amor... ... sim, para ela. Imaginei o que era a minha vida se não a tivesse conhecido... Talvez me tivesse tornado Quinn... Tinha isso bastante presente quando escrevi o livro. Tínhamo-nos apaixonado recentemente, conhecemo-nos em 1981 e foi quando comecei a escrever o livro. Portanto, é muito sobre ela, também.

Quando estava a escrever “A Cidade de Vidro” já tinha planeado “Fantasmas” e “O Quarto Fechado”, os dois outros volumes da trilogia?

Foi uma coisa estranha. Quando estava a escrever “A Cidade de Vidro” lembrei-me de uma peça que tinha escrito sete anos antes, chamada “Blackouts”. É uma espécie de história de detectives, todas as personagens têm nomes de cores, nunca fiquei muito satisfeito com ela...

Muito inspirada em Beckett?...

Um pouco, sim. Pu-la de parte, numa gaveta. Ao escrever “A Cidade de Vidro”, lembreime dela, tirei-a para fora, li-a, e pensei: “Hum, não gosto da peça, mas pode ser refeita como uma ficção.” Uma vez que eram dois livros, teria de haver um terceiro. E “O Quarto Fechado” nasceu desta ideia de transformar a peça na ficção “Fantasmas”. É muito estranha a forma como a trilogia nasceu: houve um livro e depois três.
“O Quarto Fechado” é a terceira e definitiva versão da mesma história.

De certa forma, sim. E penso que dos três é o mais forte, e talvez o mais interessante. É aquele de que gosto mais. “A Cidade de Vidro” e “Fantasmas” estão contidos em “O Quarto Fechado”. E temos de imaginar que é mesmo este narrador sem nome que conta as três histórias.

E faz algum sentido agora, para si, que se possa ler um dos livros sem ler os outros?

Sim, creio que definitivamente podem ser lidos em separado. São romances autónomos, com a sua própria lógica e a sua própria história. Mas se os juntarmos, que foi o que fiz, causam ressaltos interessantes entre si. Portanto, os três são maiores do que a soma das suas partes, julgo.

Nestes três livros temos – como frequentemente nos seus romances – um homem e o seu duplo. Fanshawe – personagem de “O Quarto Fechado” que desaparece, deixando os manuscritos para trás – está algures entre Rimbaud [o poeta que abandonou a literatura] e Bartleby [personagem de Herman Melville que prefere a inacção]. Tal como Hector Mann, o cineasta do seu romance mais recente, “O Livro das Ilusões”. São personagens que fogem, desaparecem, desistem de criar. Isto é algo que o autor deseja mas ao mesmo tempo vai rejeitando? O desejo de que a luta da criação acabe?

Acho que sim, concordo. Num certo sentido, Fanshawe e o narrador são ambos eu. São dois lados de mim. É por isso que são personagens gémeas. Na verdade, acho que em “O Quarto Fechado” há mais material autobiográfico do que em qualquer outro livro que tenha escrito. Usei acontecimentos verdadeiros. Trabalhei mesmo na recolha de dados para os censos, em 1970, no Harlem... a história que o narrador conta sobre bater a portas e depois inventar nomes, gente fictícia... fiz mesmo isso. E depois em Paris, quando Fanshawe se torna amigo de um velho compositor russo, Ivan Wyshnegradsky... Ivan foi meu amigo, é uma pessoa real. E toda a história sobre o frigorífico [que Fanshawe oferece a Ivan, e Ivan involuntariamente inutiliza, dando marteladas para desfazer o gelo] aconteceu mesmo. Também trabalhei no escritório do “New York Times” em Paris... E depois a carta que Fanshawe escreve contando como andou na ponte de um navio levando um tabuleiro de pequeno-almoço, com um vento forte... isso também me aconteceu, pensei que estava num filme de Buster Keaton, o vento soprava tão, tão, forte..! Portanto, há muito material autobiográfico enterrado lá dentro. E usei parte para Fanshawe e parte para o narrador. É um livro muito próximo de mim...
O nome Fanshawe é uma homenagem a Nathaniel Hawthorne. Menciona explicitamente Bartleby. E Rimbaud? Faz sentido pensar nele?

Rimbaud? Não. Não estava a pensar nele. Os três livros estão saturados de referências a escritores americanos do século XIX, Hawthorne, [Edgar Allan] Poe, [Henry David] Thoreau, particularmente em “Fantasmas”. Fanshawe é o título do primeiro livro de Hawthorne, Sophie [a protagonista feminina de “O Quarto Fechado”] é o nome da mulher de Hawthorne, Sofia. E quando a nossa filha nasceu, em 1987, chamámos-lhe Sophie, por causa desta personagem de “O Quarto Fechado”.
Um dos narradores na trilogia diz a certa altura que religião e mística nada significam para ele. Os seus heróis, ou anti-heróis, estão sozinhos, como em Beckett ou Kafka, são homens sem um deus...

Sim. Mas ao mesmo tempo são homens espirituais, em busca de um significado para a vida. Não sou uma pessoa religiosa, mas a ideia de viver uma vida espiritual é muito importante para mim. E penso que a maior parte das minhas personagens andam à procura disso. Pobre Hector, no “Livro das Ilusões”... eis um homem que não acredita em Deus... mas pune-se a si próprio mais terrivelmente do que algum crente. O castigo de Hector é uma espécie de castigo religioso.

Desistiu de vez de escrever poemas?

Não fui eu que desisti. Foi a poesia que desistiu de mim. Cheguei a um ponto em que era incapaz de escrever mais poemas. Gosto dos meus poemas, mas já não consigo escrevê-los. Houve um período da vida em que me fui abaixo, durante um ano não escrevi nada. E quando me recompus e recomecei a escrever, era um prosador e já não um poeta. Portanto, tive duas vidas como escritor. Uma como poeta, e outra, a seguinte, como prosador. É muito estranho, muito misterioso.

    
   

 
Paul Auster