”O Estrangeiro”, de Albert
Camus
Uma obra que marca a literatura do
séc. XX e o pensamento de quem a lê. Decide-se
aqui o destino de um homem que matou outro. Por causa do sol.
Não há perdão nem arrependimento, só
o absurdo
Por Rita Pimenta
Mersault recebe a notícia da morte da
mãe através de um telegrama: “Sua mãe
falecida. Enterro amanhã. Sentidos pêsames.”
Fica-lhe a dúvida se terá morrido naquele dia
ou na véspera. Imediatamente nos dá conta de
que pediu dois dias ao patrão e de que à má
cara deste respondeu: “A culpa não é minha.”
O protagonista passa logo às questões
práticas: pedir emprestados uma gravata preta e um
fumo, almoçar e dirigir-se ao autocarro que o levará
ao asilo onde a mãe residia. Dormiu durante quase toda
a viagem. “Por agora, é um pouco como se a mãe
não tivesse morrido. Depois do enterro, pelo contrário,
será um caso arrumado e tudo passará a revestir-se
de um ar mais oficial”, pensou, antes de viajar.
Um primeiro contacto desconcertante com uma
personagem que nos irá perturbar até ao fim
do livro. E para além dele.
Completamente exterior às convenções
e à moral vigentes, Mersault é um verdadeiro
“estrangeiro” em qualquer organização
social ou familiar. Cometerá um homicídio sem
razão aparente que não a do calor excessivo
na praia ou a da forte luz do sol que sobre ele incidia directamente
quando disparou. Mersault não tem justificação
para o crime nem para o resto. Nada do que faz é para
ser explicado. Eis o absurdo da sua existência ou de
qualquer outra.
Albert Camus (Nobel da Literatura em 1957)
apresenta-nos assim uma personagem estranha, demasiado estranha
até para si mesma. Porém, não se consegue
deixar de gostar dela e desejar defendê-la quando todos
a acusam e condenam. Mas não podemos, as nossas regras
não são as dele. Para ele, tudo é permitido
— “visto que Deus não existe e visto que
se morre”.
A propósito desta obra, publicada em
1942, diria Jean-Paul Sartre, com quem Camus fundou no ano
seguinte o jornal “Combat”: “‘O Estrangeiro’
não é um livro que explica: o homem absurdo
não explica, descreve; não é também
um livro que prove. Camus somente propõe e não
se inquieta com justificar o que, por princípio, é
injustificável.”
O protagonista será julgado e condenado.
Fica a dúvida se Mersault é sujeito à
guilhotina pelo crime cometido ou por não ter chorado
no funeral da mãe, por ter ido logo depois até
à praia nadar, ter visto um filme cómico e ter
feito amor com uma namorada recente. Não fez o que
dele se esperava, essa é a sua grande culpa.
Numa altura em que todos parecem saber de leis,
julgamentos e punições, esta é uma boa
ocasião para ler “O Estrangeiro”. E repensar
tudo isso.
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