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Condenado por não chorar
Um homicídio, um julgamento
e uma condenação. Parece simples e justo. Nunca
saberemos se assim é, e Camus não responde.
Bem-vindos ao absurdo da existência humana, deixem as
certezas aí fora, podem recolhê-las mais tarde.
Se ainda as quiserem.
Por Rita Pimenta
MHá três mortes neste segundo
romance de Albert Camus, uma natural e duas não. Numa
mata-se com a pistola, noutra com a guilhotina. Crime, só
a do revólver. É Mersault, o protagonista de
"O Estrangeiro", que dispara sobre um árabe,
na praia, num dia de muito sol. Também ele há-de
morrer, por execução. Antes de tudo isto, assiste
ao funeral da mãe. Sem chorar.
Com este enredo, Camus põe a verdade,
a justiça e a culpa a andar às voltas na cabeça
de Mersault. E na nossa.
Um escriturário de Argel recebe a notícia
da morte da mãe, que residia num asilo a alguns quilómetros
da cidade, desloca-se até lá para o velório
e funeral. Bebe um café e fuma um cigarro durante a
vigília, chega a adormecer. No regresso a casa, sente
alívio por aquilo ter terminado. Horas depois, vai
à praia e mergulha, vê um filme cómico
e faz amor com a namorada. "Pensei que passara mais um
domingo, que a mãe já fora a enterrar, que ia
regressar ao meu trabalho e que, no fim de contas, continuava
tudo na mesma", reflecte Mersault.
Se estas serão as atitudes certas de
quem acaba de se despedir da mãe, eis o tipo de problema
que se não lhe põe. E o leitor, meio desconcertado
porque cheio de ideias feitas, também não o
condena. Ainda.
É esta a mestria de Albert Camus, cola-nos
à personagem e somos conquistados até pela sua
indiferença e indolência perante o mundo e os
outros. "Maria veio buscar-me à noite e perguntou-me
se eu queria casar com ela. Respondi que tanto me fazia, mas
que, se ela de facto queria casar, estava bem. Respondi, como
aliás já respondera uma vez, que isso nada queria
dizer, mas que talvez a não amasse".
Quando o patrão pretendeu instalar um
escritório em Paris, pensou nele para o lugar e perguntou-lhe
se não queria mudar de vida: "Respondi-lhe que
nunca se muda de vida, que em todos os casos todas as vidas
se equivaliam e que a minha, aqui, não me desagradava".
É esta espécie de apatia que caracteriza a personagem
e atrai o leitor, que se inquieta e põe em causa o
que antes tinha como adquirido. Talvez por isso este título
seja tantas vezes referido nos questionários do tipo
"livros da sua vida".
Mersault irá conhecer Raimundo, fazer-lhe
um favor (escreve uma carta em seu nome) e envolver-se numa
situação que o levará a matar um homem
em circunstâncias nunca clarificadas e aparentemente
absurdas.
A prisão e o julgamento
Será na segunda parte do livro que Camus irá
pôr à prova a nossa fidelidade à personagem
e à verdade. O homem é preso e julgado. Não
escolhe advogado e rejeita a estratégia do que lhe
é nomeado pelo tribunal, discutem sobre Deus e o causídico
desespera na resposta à pergunta se no dia do enterro
tinha sentido pena da mãe: "Respondi que perdera
um pouco o hábito de me interrogar a mim mesmo e que
era difícil dar-lhe uma resposta. É claro que
gostava da minha mãe, mas isso não queria dizer
nada. Todos os seres saudáveis tinham, em certas ocasiões,
desejado, mais ou menos, a morte das pessoas que amavam".
No tribunal, só se dispõe de
conceitos e não há outra forma de explicar a
complexidade dos pensamentos e sentimentos, e então
a verdade escapa. As palavras limitam a percepção
dos acontecimentos, há a impossibilidade de se apropriarem
do real e de o revelarem, de se racionalizar a experiência
vivida - assim reflectia Jean-Paul Sartre num prefácio
à obra. Parece filosofia, e é. Camus acreditava
que os "romances mais não são do que filosofia
traduzida em imagens".
O autor leva-nos então a assistir ao
relato daquilo que partilhámos com Mersault. O funeral,
o café, o cigarro, o banho, o cinema, Maria. Tudo deturpado,
mal interpretado, adulterado. Dá vontade de entrar
nas páginas e desatar a explicar aos jurados todos
os equívocos. Mas também só temos palavras
a que nos agarrar. E não servem.
Decerto Mersault rejeitaria a ajuda, como renunciou
à do advogado e, mais tarde, à do capelão.
Ele não quer justificações, é
no absurdo que se move. Sartre, mais uma vez: "A morte,
o pluralismo irredutível das verdades e dos seres,
a ininteligibilidade do real, o acaso, eis os pólos
do absurdo".
Ao não se enquadrar em quaisquer regras
sociais, convenções morais ou doutrinas religiosas
vigentes, Mersault é um estrangeiro face a qualquer
organização social ou lógica individual.
Tudo é permitido, "visto que Deus não existe
e visto que se morre". Nada a declarar.
Veredicto: culpado.
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