”Húmus”, de Raul Brandão

Um diário? Um romance? Mesmo que inclassificável, trata-se de “uma obra-prima em qualquer literatura”, dirá David Mourão-Ferreira

Por Carlos Câmara Leme

“Acabo de reler o ‘Húmus’, de um fôlego, numa só noite, e dessa leitura saio, ao mesmo tempo, sufocado e eufórico.”

É difícil imaginar, quanto mais conceber, que uma das vozes mais solares da poesia do século XX português como é David Mourão-Ferreira pudesse ter lido numa só noite “Húmus”. Até porque é o próprio poeta e ensaísta que logo confessa: “[Fiquei] impregnado até aos ossos de uma sensação física de ‘mixórdia’ e de ‘espanto’.”

David Mourão-Ferreira escrevia estas palavras em 1967 (“Tópicos Recuperados”, Lisboa, 1992), no ano em que se celebrava o centenário do nascimento de Raul Brandão (n. 1867, Foz do Douro, m. 1930, Lisboa). E punha um dedo numa ferida que, ainda hoje, lateja: será “Húmus” “a” obra-prima do autor popularizado por títulos como “Os Pescadores”, “Os Pobres” ou, para todos aqueles que têm no coração os Açores, “As Ilhas Desconhecidas”?

O ensaísta arrisca (e muito). É “‘uma’ obra-prima da nossa literatura; ou melhor: ‘uma’ obra-prima em qualquer literatura”.

O caso de “Húmus” é bicudo nas letras pátrias. Diário? Romance? Inclassificável? A nebulosa adensa-se quando um dos mais importantes estudiosos e o biógrafo de Raul Brandão, Guilherme de Castilho, “baralha” ainda mais o leitor: “Um romance (...) de maneira nenhuma poderá ser considerado.” E acrescenta: “Embora seja este o género de que mais se aproxima.”

Guilherme Castilho, no indispensável livro “Vida e Obra de Raul Brandão” (Lisboa, Bertrand), está, quando escreveu estas linhas, a ter em conta o que disse a crítica quando o livro saiu em 1917, na sua primeira versão. Teve três, qualquer delas diferente. Em 1978, nota: “Se quisermos pôr-nos em uníssono com a nomenclatura, tão em voga, lançada por Sartre (...), julgo que podemos chamar ao ‘Húmus’ um verdadeiro ‘anti-romance’.”

E o que pode representar “Húmus” no Verão de 2003, depois do “pensiero ebole” da pós-modernidade? Uma feroz e angustiante contemporaneidade. “Ouço sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste...” Assim começa “Húmus”. “Ouves o grito? Ouve-lo mais alto, sempre mais alto e cada vez mais fundo?... — É preciso matar segunda vez os mortos.” É a “sentença” final do livro. Entre as duas, a estrutura temporal tem a duração de pouco mais de um ano, com três estações — o Verão eclipsa-se... —, e formal de 19 capítulos.

A voz de Brandão em “Húmus”, essa, é prenhe de leituras possíveis. “Agora não contenho a multidão que constitui a minha alma. Não estou só e ouço-os que clamam cada vez mais alto.” Aqui e agora, nós, vivos ou mortos, estamos entre eles.