Nada - Tudo

Depois de se ler "Húmus", a obra-prima de Raul Brandão, ninguém fica como era. Não há meio termo - ou se ama ou se odeia. "Há no mundo uma falha. É a morte que faz falta à vida."

Por Carlos Câmara Leme

"A Vila
13 de Novembro
Ouço sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste..."

Dedicado "ao mestre Columbano", é assim que Raul Brandão (n. 1867, Foz do Douro-m. 1930, Lisboa) traz à luz do dia "Húmus".

A partir do excelente trabalho de Maria João Reynaud para a colecção Obras Clássicas da Literatura Portuguesa (patrocinado pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, a que a Campo das Letras se associou, numa aposta fora de vulgar em Portugal, ao juntar numa mesma caixa as três edições-versões do livro, de 1917, 1921 e 1926), ficamos a saber que pouco se conhece do princípio dos princípios de "Húmus". Pouco importa. Interessa, isso sim, notar que se trata de um "work in progress", solitário, sofrido, que terá consumido muitas horas, dias (e noites certamente) ao escritor.

Ora de jacto ora numa caligrafia menos atabalhuada mas sempre inclinada (coteja-se os fac-símile que M. J. Reynaud incluiu no terceiro tomo), ao que o leitor não ficará indiferente é ao uivo vertiginoso - "o meu ritmo - é cólera", desabafará o romancista -, visceral e vibrante que a sua escrita encerra.

Raul Brandão não dá descanso. De todo em todo não se aconselha levar "Húmus" para férias, a não ser que queira desassossegar a sua alma. Construído em forma de diário fragmentado, com rápidos lances, descrições realistas e fantasmagóricas, personagens vivas-mortas, um alter-ego, Gabiru, "Húmus" tem como cenário (um)a Vila. Um microcosmos universal de demência a que nem o tempo escapa. "Estamos aqui todos à espera da morte! estamos aqui todos à espera da morte!", lê-se no final do primeiro capítulo.

Ao longo de 19 capítulos e de três estações de um ano - o Verão escapa à trituração do escritor -, diante dos nossos olhos vão desfilando seres abjectos (só Joana, a mulher da esfrega, é um pouco salvaguardada: "Cabem na noite os mundos infinitos mas só me interessa a alma de Joana"). Basta os nomes para nos arrepiarmos: Procópia, Eleutéria. Biblioteca, Teodora, Restituta, Adélia. Odeiam-se de morte.

O jogo da morte
Mesmo quando podia existir a mínima nesga de ludicidade. "Desde que o mundo é mundo que as velhas se curvam sobre a mesa do jogo. O jogo banal é a bisca - o jogo é o da morte..." Perante o espectáculo, o narrador lúcida e absurdamente (não, não é uma contradição na escrita de Brandão e muito menos em "Húmus") aduz: "Não sei bem se estou morto ou se estou vivo..." Nem bem nem mal. Esse é o sufoco maior que (nos) acompanha do princípio ao fim desta obra-prima e finissecular das nossas letras.

Nada é a preto e branco. Nem o Nada, quanto menos o Tudo. Há uma paleta de cores que atravessa e transfigura o romance. Neste lance portentoso, a alteridade do eu, da relação do eu consigo próprio (um "ser para a morte", a rasar a definição do filósofo alemão Martin Heidegger, em "Ser e Tempo") e com o que nos rodeia. A natureza, e dentro dela a simbolística da árvore como da água - "Só a água fala nos buracos", escreve Herberto Helder no seu também fantástico poema "Húmus"). E os outros. Mais precisamente, o Outro, com várias interpretações do mundo numa alteridade em permanente mudança.

Raul Brandão sofre. Estamos perante uma das escritas mais dolorosas em que a literatura se cumpriu, no fio da navalha, com "olhos aguados de peixe", não dando tréguas a ninguém. Mesmo quando pensamos que há uma nesga de esperança, num texto que tem uma carga onírica fortíssima, somos levados a entrar na luz das trevas.

Esta contaminação conduz-nos ao dilema central de "Húmus". "Perpétuo combate a que bem quero pôr termo e que só tem um termo - a cova. Eu e o outro - eu e o outro... E o outro arrasta-me, leva-me, aturde-me. Perpétuo debate a que não consigo fugir, e de que saímos ambos esfarrapados à espera que recomece - agora, logo daqui a bocado - porque só essa luta me interessa até ao âmago... Estou pronto!"

E o leitor estará? A "Húmus" aplica-se uma banalidade. Verdadeira. Depois de se ler este livro não se pode ficar indiferente. Não há meio termo: ou se rejeita ou se adere. Ou se ama ou se odeia. "Nada - Tudo."

Obra aberta, em sentido figurado e literal, em "Húmus" cabe um sem número de leituras. Há momentos em que se antevê uma saída. O das palavras, de uma poética. Que Raul Brandão gere com uma mestria de gigante, com cadeias textuais em repetição que reenvia para outros núcleos do livro: "E tanto vale a pena para o caso o génio da consciência, como o ridículo em frente da consciência. - Valeu a pena não matar? - pergunto - perguntas - perguntam." Mas as palavras são punhais nesta terra de ninguém. "É com as palavras que os mortos se impõem". Céu e inferno (título de um capítulo). Também não: "Só há no céu e no inferno um espectro pior."

Deus? "Eu creio em Deus", põe Brandão na boca de Gabiru. Mas no último capítulo aparece a estocada (fuga?) final. Fatal...

"25 de Dezembro
Há no mundo uma falha (...) É a morte que faz falta à vida." Já apanhámos vários socos no estômago. Mas a ressoar, voltamos ao "mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste". Nos confins dos tempos, nas derradeiras linhas. "É preciso matar segunda vez os mortos."