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Fiódor Dostoiévski
O Purgatório aqui, na terra
Conhecemos Rodion Raskólnikov "ao
entardecer de um dia muito quente de inícios de Julho".
Já Decidiu o seu crime - homicídio, à
machadada. O que fica depois disso? Uma alucinatória
valsa a mil tempos. "Este é um caso moderno, próprio
dos nossos tempos", dirá o investigador Porfíri
Petróvitch.
Por Vanessa Rato
A 23 de Abril de 1849, o escritor Fiódor
Mikhailovitch Dostoiévski (Moscovo, 1821 - S. Petersburgo,
1881) é preso sob suspeita de conjura revolucionária
por pertencer ao grupo socialista Petrashevski. Com ele são
detidos outros 122 suspeitos - todos são condenados
à morte.
Até ao dia marcado para a execução
da sentença, o escritor terá vivido como os
condenados que descreve: num limbo, quase estático
sobre uma nesga de terra com precipícios em fundo,
agarrado com força a não mais que uma palha
de vida.
Inesperadamente, alguns, incluindo Dostoiévski,
são devolvidos ao mundo de que pareciam para sempre
arredados: com o pelotão de fuzilamento preparado e
os três primeiros réus já de olhos vendados,
chega a noticia de que a primeira sentença do tribunal
fora comutada por uma segunda - trabalhos forçados
em vez da morte, a cumprir, no caso de Dostoiévski,
na penitenciária de Omsk, na Sibéria. Foram
quatro anos e a obrigação de ingressar no exército
como soldado raso, que terminaram quando o czar Alexandre
II lhe concedeu uma amnistia.
Depois de dez anos de cativeiro, Dostoiévski
regressa a São Petersburgo em liberdade. Mas não
há forma de escapar incólume a uma travessia
como a que acabara de fazer e "Crime e Castigo"
(1866), a primeira obra que escreve de novo em liberdade,
atesta-o: considerado o primeiro dos seus grandes romances
e uma das obras fundadoras da modernidade, marca o principio
da plena maturidade literária de um jovem testemunha
da falência do sistema político-social hegeliano
que haveria de ascender à esfera das grandes referências
da literatura universal.
Valsa a mil tempos
Entramos na voragem de uma realidade claustrofóbica,
abafada, elíptica, onde os eventos se sucedem irrevogáveis
sobre os desígnios de um jovem: Rodion Raskólnikov.
Ródia.
Conhecemo-lo "ao entardecer de um dia
muito quente de inícios de Julho".
Em Petersburgo, quem pode já rumou ao
campo. Nas ruas e becos do centro da cidade ficou apenas uma
mole indistinta de pequenos artífices, funcionários
públicos, prostitutas, alcoólatras e pedintes.
Todos imersos nos mesmos cheiros sufocantes a cal e poeira,
nos mesmos vapores fétidos que, por entre um calor
atroz, sobem das águas estagnadas e podres dos canais,
das tabernas sujas e do lixo acumulado pelos cantos.
Ródia é belo, mais belo e alto
que a média dos homens da cidade, "de traços
finos", "com uns admiráveis olhos escuros"
e "cabelo loiro mate". Ex-estudante de Direito,
também é culto, mais culto que a média.
Contudo, quando sai do miserável tugúrio onde
vive, veste terríveis andrajos e caminha "numa
espécie de cogitação profunda",
"não reparando nem querendo reparar no que se
passa à sua volta".
O plano de um crime começou há
um mês a germinar na sua cabeça - matar.
Quando o conhecemos, os dados já foram
lançados. Ele já contou os passos que vão
do portão do prédio onde vive até um
outro, onde vive uma velha usurária com trança
de rabo de rato, que esconde debaixo da cama um baú
vermelho cheio de ouro e guarda na gaveta da cómoda
milhares de rublos: são 730 passos certos entre ele
e o seu destino.
Ródia, está decidido, levará
um machado e há-de eliminá-la, apagar da face
do mundo um simples "piolho", apoderar-se do que
for possível e construir o futuro que pode erguer aquele
que decide inclinar-se e tomar o poder em mãos.
Ródia mata, sim, e não uma, mas
duas vezes. Comete um duplo homicídio, à machadada.
Mas, e depois? Que fazer com isso?
A maioria das personagens mais fascinantes
que conhecemos mergulham a fundo na semi-alucinatória
intranquilidade, quase loucura, da procura de uma (nova) moral.
É também o caso de Ródia.
O ambiente é febril. Os eventos e protagonistas
sucedem-se em catadupa parecendo ocupar todo o espaço.
Não há espaço.
Ródia, a mãe, a irmã,
o amigo Razumíkin, o desgraçado Marmeládov,
a mulher deste, a tísica mas monumental Katerina Ivánovna,
e a filha, Sónia, levada à prostituição;
o terrível Svidrigáilov, Piotr Petróvitch,
o investigador Porfíri Petróvitch. Mulheres
que se precipitam de pontes, homens que optam por atirar-se
sob rodas de caleches, sonhos de cavalos espancados à
morte, um segredo escondido debaixo de uma pedra.
As vidas cruzam-se e emaranham-se numa elipse
instável, avançando aos safanões, mastigando
um tropeço e antevendo já o escorregão
seguinte numa espécie de demente valsa a mil tempos.
Há gestos que se perdem a meio, palavras
que ecoam durante semanas até se estilhaçarem
contra um obstáculo. Ródia quer agarrar-se à
vida. Entramos na sua cabeça: pensamentos substituem-se
uns aos outros, momento a momento, em vertigem, numa tortura
em crescendo, esmagadora. Ecos de ideias ampliam-se, mais
e mais, até tudo estoirar, finalmente, sobre a realidade.
Ródia comete um crime, mas a sua grande
tragédia é a complexidade das suas contradições
interiores que fazem dele, no século XIX, uma figura
de um século XXI em busca de uma qualquer hipótese
de redenção. Há redenção?
Ao ressuscitar, depois da morte, com o Purgatório aqui,
na terra.
"Este é um caso moderno,
próprio dos nossos tempos, em que o coração
humano anda perturbado", dirá o investigador Porfíri
Petróvitch.
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