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”Crime e Castigo”, de
Fiódor Dostoiévki
É um caso moderno, “próprio
dos nossos tempos”, o de Rodion Ráskolnikov.
Comete um crime – um duplo-homicídio. E sabemos
também à partida que sofrerá um castigo.
Mas as suas grandes tragédias são a complexidade
e as contradições interiores que fazem dele,
no século XIX, um homem do século XXI.
Por Vanessa Rato
Borges dizia que, como o momento em que
encontramos pela primeira vez o amor ou a primeira visão
que temos do mar, “a descoberta de Dostoiévski
marca uma data memorável na nossa vida”,–
ler um livro seu, qualquer um deles, “é penetrar
numa grande cidade, que ignoramos, ou na sombra de uma batalha”.
“Crime e Castigo” está entre as maiores
dessas batalhas, a sua sombra é, por isso, também
imensa.
Considerado o primeiros dos seus grandes
romances e uma das obras fundadoras da modernidade, “Crime
e Castigo” (1866) foi escrito no regresso a São
Petersburgo, depois de Dostoiévski escapar a uma condenação
à morte (por suspeita de envolvimento numa conjura
revolucionária) e de ter, em vez da execução,
cumprido uma pena de trabalhos forçados na Sibéria.
Não há forma de escapar
incólume a uma travessia como essa e a primeira obra
que escreve de novo livre atesta-o: marca o principio da sua
plena maturidade literária e foi sobretudo através
deste romance, até hoje a mais conhecida das suas obras,
que Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski (Moscovo
1821 – S. Petersburgo 1881), jovem testemunha da falência
do sistema político-social hegeliano, ascendeu à
esfera das grandes referências da literatura universal.
O ambiente é febril. Estamos numa
Petersburgo de cubículos escuros e bolorentos, de paredes
de papel que as vozes, baixas, inseguras de fome e medo ou
empastadas de álcool e depravação atravessam.
Sair para a rua é sair para um Verão de calor
atroz, que faz subir para o ar os vapores fétidos das
tabernas, do lixo acumulados pelos cantos e das águas
estagnadas, apodrecidas.
Por todo o lado há gente a tentar
desesperadamente agarrar-se a um palha de vida. Entramos na
voragem de uma realidade claustrofóbica, abafada, elíptica,
onde os eventos se sucedem irrevogáveis sobre os desígnios
de um jovem (Rodion Raskólnikov). Entramos na sua cabeça
– pensamentos torturantes hão-de esmagar-nos
em catadupa, ampliando-se mais e mais, até estoirarem,
finalmente, sobre a realidade.
Sabemos à partida que haverá
um crime e um castigo. Quando conhecemos o protagonista de
ambos, os dados já foram, aliás, lançados.
Já foram contados, mesmo, os passos que o separam a
ele – vestido de farrapos, mas jovem, belo, culto, “com
uns admiráveis olhos escuros” e “cabelo
loiro mate” – do duplo homicídio que haverá
de cometer à machadada: são setecentos e trinta,
certos, desde o portão do prédio onde mora até
ao segundo andar de um outro onde uma velha usurária
com trança de rabo de rato, um “piolho”,
guarda debaixo da cama um baú vermelho com ouro e esconde
na primeira gaveta da cómoda milhares de rublos.
A maioria das personagens mais fascinantes
que conhecemos mergulham na intranquilidade da procura de
uma (nova) moral. É o caso de Ródia. A sua tragédia:
a complexidade das contradições interiores que
fazem dele, no século XIX, uma fígura do século
XXI – “Este é um caso moderno, próprio
dos nossos tempos, em que o coração humano anda
perturbado”, dirá o investigador Porfíri
Petróvitch.
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