“A Náusea”, de Jean-Paul Sartre

Com “A Náusea”, escrito em 1938, Jean-Paul Sartre expôs ao mundo as bases da sua filosofia existencialista

Por Paulo Moura

Página do diário de Antoine Roquentin: “Terça-feira. Nada. Existi”. Pode não parecer, mas foi um dia em cheio para o duvidoso historiador de 33 anos. Existiu. Que mais lhe poderia acontecer? Existir é tudo o que pode acontecer ao Homem, é essa a constatação e a tese de “A Náusea”, o primeiro romance de Jean Paul Sartre.

Escrito, em 1938, sob a forma de diário, “A Náusea” é a história de uma descoberta. Nas suas deambulações meditativas solitárias, o protagonista, Roquentin, observa as suas próprias mãos, espantado. Interroga-as sobre a sua identidade. “Sou eu estes dois bichos que se agitam na ponta dos meus braços. A minha mão coça uma das suas patas com a unha da outra pata”.

Observa o seu corpo, com todas as suas partes, os objectos que lhe são exteriores, os outros seres humanos, o mundo, a História, a cultura. Tudo a existir ao mesmo tempo, sem nenhuma razão. Mas ainda assim a existir, de forma impertinente, repugnante, desafiadoramente insuportável. É isto a “náusea”. Este sentimento agudo da contingência de tudo, que as páginas do diário de Roquentin nos fazem partilhar. As coisas existem mas não precisavam de existir e nós, nós estamos claramente a mais no mundo. Não temos razão de ser. A nossa existência surge antes da nossa essência. Existimos, ponto final. E ainda por cima somos livres. Irremediavelmente livres e portanto responsáveis pelas nossas acções.

A própria cultura, que nos parece dar sentido à vida humana, é humilhada em “A Náusea” como algo irrelevante e arbitrário. É representada pela personagem do Autodidata, que anda a ler todos os livros da biblioteca municipal de Bouville, por ordem alfabética. Quando Roquentin o conhece, ele parece ser um homem muito culto, mas é facilmente apanhado em falso, porque só sabe tudo até à letra L.

Sartre foi antes de tudo um filósofo. Praticamente desde que nasceu. A literatura não foi mais do que um veículo. “A Náusea” começou por ser um massudo e extensivo projecto de ensaio metafísico sobre a contingência, sob o título “Melancolia”. Foi Simone de Beauvoir que o convenceu a transformar o livro num romance e a editora que lhe pediu para alterar o título. Pode dizer-se que a fórmula foi um êxito. Com “A Náusea”, Sartre expôs ao mundo as bases da sua filosofia existencialista, que viria a aprofundar em obras ulteriores, como “O Ser e o Nada”, e que o tornaria num dos maiores vultos do século XX.

Mas atenção. “A Náusea” é um livro terrível. Tão bem escrito que se nos impõe para o resto da vida. Ao lê-lo é impossível não sentir a náusea. E nunca mais olharemos para as nossas mãos da mesma maneira.