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“A Náusea” não
é um romance, mas existe
“A Náusea” é
um tratado de filosofia disfaraçado de romance. Apresenta-nos
os princípios do existencialismo de Sartre ao vivo,
o que os faz parecer evidentes. Um belo truque.
Por Paulo Moura
Há quem pense que "A Náusea"
é uma fraude. Uma obra-prima, o melhor livro daquele
que é provavelmente o maior escritor do século
XX, mas ainda assim uma fraude. Porque é um romance,
sem o ser. É um tratado de filosofia disfarçado
de romance, logo, não importa que seja um bom romance,
um genial romance: não é um romance. É
um expediente, um veículo, uma batota. Tanto mais fraudulento
quanto a sua qualidade como romance é arrasadora.
O que Jean-Paul Sartre queria era escrever
um ensaio interminável sobre o problema da contingência
e o primado da existência sobre a essência. Andou
anos às voltas com os seus conceitos complicadíssimos,
com as intragáveis citações de Husserl
e Heidegger, com milhares de folhas e fichas, até que
apareceu com um assustador incunábulo intitulado "Melancolia".
Estava orgulhoso. Era a sua primeira grande obra, ia finalmente
dizer ao mundo o que pensava da Vida, do Universo, do Homem.
Deu-o a ler à sua editora, a Gallimard, e à
única pessoa em quem confiava intelectualmente, a sua
companheira Simone de Beauvoir. A editora precisou apenas
de ler o título para rejeitar a obra. "Melancolia"?
Quem compraria um tratado filosófico chamado "Melancolia"?
Simone perdeu um pouco mais de tempo. Terá lido algumas
páginas antes de chegar à conclusão que
viria a revelar-se uma das grandes intuições
da história literária e cultural: o que Jean-Paul
deveria escrever era ficção. "Melancolia"
teria de ser completamente recauchutada. Era preciso inventar
uma personagem, uma cidade, algo que se parecesse com um enredo,
um título forte, apelativo. Era preciso, enfim, uma
operação de imagem, insuflar vida no manuscrito.
Surgiu assim, em 1938, "A Náusea",
uma espécie de truque comercial. E resultou. Sartre
tornou-se famoso, guru, guia espiritual de multidões.
Um verdadeiro intelectual superstar durante meio século.
Os seus livros seriam "best-sellers", esteve no
centro de todos os acontecimentos políticos, ganhou
o Nobel, que recusou, para não comprometer a sua liberdade
de escritor. Marcou indelevelmente o século XX, a que
Bernard-Henri Lévy chamou "O século de
Sartre". Herbert Marcuse foi ainda mais longe: "Ele
talvez não queira ser a consciência do Mundo.
Mas é o que ele é, de facto".
Com a ajuda de Simone de Beauvoir, Sartre criou
então um protagonista para o romance: Antoine Roquentin,
um historiador ocupado a investigar a vida de um tal senhor
de Rollebon, um marquês do século XVIII conhecido
pela sua feiura e conquistas de sedutor. Criou um cenário,
a pequena cidade de Bouville, e alguns personagens secundários,
como a antiga mulher de Roquentin, Anny, por cujo amor ele
vive, e o Autodidacta, com quem se cruza na biblioteca municipal.
O Autodidacta está a ler todos os livros, por ordem
alfabética, diz-se humanista e gosta de rapazinhos.
É sem dúvida um homem muito interessante e culto,
mas que se apanha facilmente em falta, se lhe conhecermos
o segredo. Basta, por exemplo, falar-lhe de Mallarmé,
quando sabemos que ele ainda vai em Lavergne... Só
faltava o argumento, a acção. Por muito que
as personagens e os cenários estivessem carregados
de simbolismo, era ainda preciso que acontecesse qualquer
coisa, para que o romance fosse um romance. Sartre começou
por dar-lhe a forma de um diário. Se não houvesse
mais nada, pelo menos a cadência do passar dos dias
transmitiria uma certa sensação de mudança.
E depois, para que não houvesse dúvidas, começou
assim o livro: "Segunda-feira, 29 de Janeiro de 1932.
Aconteceu-me qualquer coisa. Já não posso duvidar".
Pura trafulhice. Em "A Náusea" não
acontece nada. Excepto a sensação, experimentada
por Roquentin, de que os objectos estão vivos, de que
há objectos em demasia, de que as coisas tanto podiam
estar ali como não estar, de que o Mundo é pura
contingência, não precisava de existir, mas existe,
existe, existe, de que nós, humanos, estamos claramente
a mais, de que não podemos parar o pensamento, o que
se torna muito enjoativo, de que podemos fazer o que nos der
na gana, de que não há regras nem ordem excepto
as que inventamos, de que somos estupidamente livres, mesmo
quando não queremos, e que temos sempre de responder
por isso. E que isto é existir, e nada nos resta senão
existir. Todas estas confusões são o que "acontece"
em "A Náusea". E não é pouco.
Claro que está tudo na cabeça de Roquentin,
mas isso não lhe tira nem um grama de emoção.
Porque a história de "A Náusea" é,
nem mais nem menos, a aventura do Homem no Mundo. Roquentin
é uma personagem em permanente e pura atitude filosófica.
Está no grau zero de tudo, na tábua rasa da
vida. É obviamente um alter-ego de Sartre, transposto
para um romance para poder viver em plena estupefacção.
Há por isso quem considere "A Náusea"
um texto patológico, um escape neurótico. Tudo
menos uma obra literária, porque nasceu para justificar
uma filosofia. Porque não brotou espontaneamente da
imaginação, mas de uma realidade já interpretada.
Por essa razão, por Sartre ter criado
primeiro o mundo, e depois a ficção desse mundo,
talvez "A Náusea" não seja um romance.
Mas Existe.
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