“Trópico de Câncer”, de Henry Miller

“Trópico de Câncer” é um livro louco sobre a Paris boémia dos anos 30. Um lugar e uma época que se tornaram um mito, de que Henry Miller é um dos heróis

Por Paulo Moura

Se expurgarmos a vida de todos os preconceitos, convenções e valores sociais, de toda a disciplina, decência, patriotismo, crença no progresso, sentido do dever, respeito pelas instituições e pelos outros, todo o pudor, toda a vergonha, se expurgarmos a vida de tudo isto, o que resta? Quase tudo. É esta a constatação avassaladora de “Trópico de Câncer”.

Henry Miller não tem propriamente o perfil do “desiludido da vida”. Ele nunca se iludiu. Após uma adolescência mal-comportada em Brooklyn, nos primeiros anos do século XX, nem dois meses se conseguiu aguentar na Universidade. As rotinas, a disciplina física e mental eram-lhe insuportáveis. Fugiu. Tornou-se motorista de táxi, empregado de biblioteca, mensageiro da Western Union. E foi com as poupanças da sua segunda mulher, a motorista de táxi June (Miller casaria cinco vezes), que viajou para a Europa, em 1928.

“Trópico de Câncer” é o relato da vida do escritor em Paris, nos anos da recessão. Um relato na primeira pessoa, manifestamente autobiográfico, desencantado e verdadeiro. É um livro sem estrutura nem enredo, escrito à deriva, como o pensamento do autor. É um monólogo, uma “corrente de consciência”, narrando episódios insignificantes, encontros com prostitutas, expedientes para arranjar dinheiro, bebedeiras, farras com amigos decadentes.

É um texto anárquico, eivado de palavrões e momentos de profunda reflexão filosófica, descrições de lugares e eventos repugnantes e de declarações de inabalável paixão pela vida.

Um relato tão franco que, quando foi publicado, em 1935, foi logo banido nos Estados Unidos. Só 30 anos mais tarde o escritor conseguiu que um tribunal levantasse a proibição, quando Miller era já considerado um guru pela “beat generation”. A sua escrita livre e vagabunda, a forma aberta com que fala de sexo e de libertinagem tinham-lhe valido o título de precursor do movimento “hippie”.

Henry Miller regressou aos EUA quando começou a guerra. Mas os seus anos parisienses transformaram-se numa lenda. Amigo de Laurence Durrell e amante de Anaïs Nin (cuja paixão por Miller e June foi tema do filme “Henry and June”, de 1992) o escritor tornou-se ele próprio uma personagem de livros e histórias.

“Trópico de Câncer” é um pedaço de vida, ainda quente, trazido desse lugar mágico e submerso que foi a Paris boémia dos anos 30. É um livro sobre o que sobra da vida depois de termos esquecido os princípios, os valores, as razões que a explicam e justificam. E o que sobra é quase tudo.