A canção desafinada da vida

“Trópico de Câncer” é um livro sobre sexo e bebedeiras, cheio de palavrões. Um amargo mas irresistível hino à vida, três décadas antes da revolução "hippie"

Por Paulo Moura

Paris, anos 30. Henry Miller vagueia por Paris sem cheta no bolso. É uma Paris estranha, em que parece que todos os homens são artistas falhados e bêbados e todas as mulheres são putas. Mas é Paris, e isso tem uma força tremenda. Isso move multidões. Pelo menos as multidões de americanos. Essa ideia, esse nada. É preciso que alguma coisa mova as multidões. Pelo menos as multidões de bêbados.

Henry Miller está em Paris e isso é o melhor pretexto para se encontrar com a sua verdadeira natureza. "Em tempos pensei que ser humano era o objectivo mais elevado que um homem podia ter, mas agora compreendo que isso se destinava a destruir-me. Hoje orgulho-me de dizer que sou inumano, que não pertenço a homens nem governos, que não tenho nada a ver com credos e princípios. Não tenho nada a ver com a máquina rangedora da humanidade: pertenço à terra! Digo-o deitado na minha almofada e sinto os cornos irromperem-me das têmperas".

É uma vida simples a que Henry Miller leva em Paris. Cada dia é vivido com dois objectivos: conseguir dinheiro e conseguir sexo. Ou conseguir sexo com dinheiro, ou dinheiro com sexo, para no fim constatar que não era nada daquilo que se queria. E continuar a busca. Mais sexo, mais dinheiro. "Ouve lá, conheces por acaso uma cona chamada Norma? (...) Tive-a aqui ontem e fiz-lhe umas cócegas no cu, mas não me deixou fazer mais nada. Meti-a na cama... cheguei até a tirar-lhe as cuecas... mas depois chateei-me. Jesus, já não estou para me cansar com uma luta dessas".

Nenhuma luta vale a pena em Paris, mas vai-se sempre à luta. Uma única condição: as causas nunca são nobres. "Disse-lhe que te levaria comigo, um dia. Falei muito de ti... não sabia o que havia de lhe dizer. Talvez gostasses dela, sobretudo vestida. Não sei...

– Disseste que era rica, não disseste? Gostarei dela! Não me importo que seja velha, desde que não seja um estafermo...

– Não, não é um estafermo! De que raio estás a falar? Já te disse que é encantadora. Fala bem, tem bom aspecto, só os braços é que...

– Pronto, se é assim, eu fodo-a... se tu não quiseres, claro. Diz-lhe isso, mas com subtileza".

Em "Trópico de Cancer", o sexo é um fim em si mesmo, e também a prova de que não vale nada por si só. É uma armadilha de que apenas algo transcendente nos pode salvar e onde descobrimos que não existe nada transcendente. "Tanto mistério à volta do sexo e de repente descobrimos que não é nada, que é apenas um alvo. Não seria divertido se encontrássemos uma harmónica lá dentro? Ou um calendário? Mas não tem nada, absolutamente nada. É repugnante. Fiquei quase maluco... Sabes o que fiz depois? Dei-lhe uma foda e virei as costas à gaja. É verdade, peguei num livro e li. Pode-se ganhar alguma coisa com um livro, mesmo que seja mau... mas uma cona é pura perda de tempo".

Paris entre as duas guerras é um pântano pútrido, um labirinto sórdido, sem moral nem futuro, onde a noite nunca se dissipa. E ao mesmo tempo o único lugar onde vale a pena viver. O lugar mais belo e mais autêntico do mundo. Porque o mais desencantado, o mais livre, o único onde o ser humano não pode fugir de si próprio. "Aqui, onde o rio serpenteia docemente através da cinta dos montes, há um solo tão saturado de passado que, por muito que a mente recue, nunca se consegue isolá-lo do seu fundo humano".

Não é fácil dizer qual é a filosofia de "Trópico de Cancer". É de recusa radical de tudo o que está instituído, mas não é um hino ao cepticismo. "Enquanto o Mundo se desmorona, a Paris que pertence a Matisse estremece de orgasmos vivos, sufocantes, o próprio ar está aprisionado em esperma estagnado e as árvores emaranhadas como cabelo. A roda desce firmemente a encosta, sobre o seu seixo vacilante; não há travões, nem rolamentos de esferas, nem câmaras de ar. A roda desmantela-se, mas a revolução mantém-se intacta..."

Publicado em 1935, "Trópico de Cancer" seria proibido nos Estados Unidos durante 30 anos. Só viu a luz quando a "beat generation" e a revolução hippie e sexual o descobriram. Foi como se Henry Miller tivesse de esperar pela América. Com ele, a revolução começou mais cedo. Nasceu com ele. Miller nunca estudou numa Universidade, nem viveu muito tempo no mesmo lugar. Como uma criança que se recusa a crescer. Sempre soube que um mundo terminara e que era preciso reinventar a vida, como a geração do pós-guerra viria a descobrir. "Temos de nos enterrar de novo na vida a fim de ganharmos carne... Se viver é o principal, então viverei, nem que tenha de me tornar canibal... No que respeita à história, morri... Encontrei Deus, mas Ele não chega. Estou apenas espiritualmente morto. Fisicamente estou vivo. Moralmente sou livre... A alvorada ilumina um mundo novo, um mundo de selva em que os espíritos magros vagueiam de garras afiadas. Sou uma hiena, sou uma hiena magra e faminta: avanço para engordar".

"Trópico de Cancer" é uma vagabundagem por Paris. Uma vagabundagem sonâmbula de "alguém cujo peito é tão estreito que uma medalha o tornaria corcunda" por uma cidade com as costas muitos largas, símbolo simultaneamente da abjecção e da maravilha humanas.

Há quem diga que não é literatura. Mas que interessa isso? "Isto não é um livro. É libelo, é calúnia, difamação... É um insulto prolongado, uma cuspidela na cara da Arte, um pontapé no cu de Deus, do Homem, do Destino, do Tempo, do Amor, da Beleza... Vou cantar para vocês. Um pouco desafinado, talvez, mas cantarei".