"Sopra de Valmares a Força de
Uma Terra Imaginada"
A escritora algarvia foi anteontem
distinguida com o Grande Prémio de Romance da APE.
O galardão foi atribuído a “O Vento Assobiando
nas Gruas”, romance que nos traz de novo a aldeia fictícia
de Valmares, espaço onde a humilhação
tem a violência de uma tempestade e o amor e a delicadeza
de uma aragem.
Por Andréia Azevedo Soares
Os dois mais recentes livros de Lídia
Jorge têm as suas raízes agarradas a uma terra
que não existe, a aldeia ficcional de Valmares. "O
Vento Assobiando nas Gruas" (2002) recebeu anteontem
o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação
Portuguesa de Escritores (APE). E "O Vale da Paixão"
(1998) integrou a selecta lista dos oito finalistas do prémio
irlandês IMPAC, considerado a mais valiosa distinção
do mundo literário - que acabou por ser atribuído,
anteontem, ao escritor turco Orhan Pamuk. "Eu não
conheço a obra desse autor, mas estou ansiosa por lê-la",
disse ontem Lídia Jorge ao PÚBLICO, numa entrevista
feita por telefone. A romancista estava em Frankfurt, Alemanha,
onde participava numa semana de cultura portuguesa.
Lídia Jorge acredita que Valmares simboliza
"uma terra do Sul" onde sopram ventos mediterrânicos
e onde as paixões desmedidas têm lugar. É
um espaço de transformação, onde a cultura
milenar está progressivamente a ser substituída
por outra de lazer. A ideia metafórica de mudança
está presente, por exemplo, nas gruas que operam profundas
alterações na terra. Trazem à superfície
aquilo que repousava em camadas arqueológicas - imagem
que preside ao título da obra vencedora do Prémio
da APE, publicada entre nós pela D. Quixote.
PÚBLICO - Estava muito receosa aquando do lançamento
de "O Vento Assobiando nas Gruas". A apreensão
tinha a ver com a forma como a personagem Milene, uma rapariga
que sofre de esquizofrenia, iria ser recebida pelos leitores?
LÍDIA JORGE - Não. O meu
receio foi condensado por aquilo que o meu editor [Nelson
Matos] disse: "Este é um livro contra a corrente,
extenso [542 páginas] para aquilo que as pessoas, neste
momento de rapidez, querem encontrar, e que possui um título
enigmático". Mas, simplesmente, um livro é
como uma criatura: não se lhe pode mudar a feição.
Nasce como nasce. E o meu receio era que esses obstáculos
pudessem fazer com que "O Vento Assobiando nas Gruas"
ficasse invisível.
A visibilidade que o Grande Prémio
da APE traz para o romance torna essa distinção
mais especial para si?
Exacto. É uma das razões pelas
quais este momento está a ser para mim complexo. E
costuma-se dizer que, para os momentos complexos, é
preciso encontrar palavras simples. E a palavra é alegria.
Dadas as circunstâncias, o facto de o meu livro não
ter passado despercebido é motivo de alegria.
"O Vento Assobiando nas Gruas"
foi distinguido na mesma altura em que o romance anterior,
"O Vale da Paixão" (1998), integrava a selecta
lista dos oito candidatos ao prémio IMPAC. É
curioso, porque a narrativa desses dois livros se desenrola
em Valmares, aldeia fictícia criada por si...
É coincidência. O que sopra de
Valmares é a força de uma terra imaginada. E
esses dois livros têm essa pertença. Mas Valmares
é um espaço acidental na minha obra. Não
me vou jamais confinar a ele só porque esses dois livros
até agora foram beneficiados por essa vantagem. Quero
outros lugares.
Não voltará a escrever sobre
essa aldeia algarvia?
Valmares fez parte de mim desde os primeiros
livros, eu só não tinha encontrado o nome. Essa
espécie de terra ao Sul, onde as paixões são
violentas embora escondidas e onde há uma cultura milenar
que se encerra e outra, moderna, voltada para o lazer, que
se abre. A palavra só foi encontrada há pouco
tempo, mas desde que eu escrevo, escrevo sobre essa transformação.
E textos que já escrevi depois de "O Vento Assobiando
nas Gruas" trazem Valmares atrás.
Esse espaço de mudança - e
as gruas que revolvem o solo são uma metáfora
disso - é um fio que une os seus textos?
Tenho estado a pensar que talvez aquilo que
marca os meus livros seja o processo de Caim. O que os une
é essa ideia de que Caim se aproveita do irmão.
E isto está representado em "O Vento Assobiando
nas Gruas" através do crime que se faz sobre a
figura de Milene. É uma traição latente,
escondida na fraternidade. E a traição entre
os irmãos, dentro da questão do amor como uma
brecha, dá unidade aos meus livros.
Numa conferência do ciclo "Vozes
e Olhares no Feminino", do Porto 2001, contou uma história
real que a marcou: a de uma rapariga que, após dar
à luz uma criança, despertou a curiosidade da
aldeia. Fez-se uma fila à porta da casa para que todos
pudessem espreitar o berço e descobrir pelas feições
do bebé quem seria o pai. Sucede à personagem
Milene uma situação inversa - ela é mutilada
em vez de ficar grávida -, mas a humilhação
é a mesma.
A humilhação é a mesma.
O ser humilhado faz-me escrever. É claro que eu não
escreveria só sobre a figura humilhada. Eu escrevo
com as duas mãos: com uma mão, procuro demonstrar
que uma coisa está errada, ou a revolta contra alguma
coisa; com a outra, procuro compor alguma coisa que tenha
a ver com a beleza. Mas a falta de fraternidade e a humilhação
é uma coisa que a minha mão esquerda está
permanentemente a trazer para a escrita.
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