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"Apaixonei-me Mesmo pela Lillias"
“Lillias Fraser” acompanha
os passos de uma rapariga de olhos dourados e com um dom sobrenatural,
que escapa à batalha de Culloden, na Escócia,
em 1746. O 51º título da Colecção
Mil Folhas, que amanhã comemora um ano, foi Prémio
PEN Clube Português, na categoria de ficção,
em 2001, e pretexto para uma conversa com a autora.
Por Marisa Torres da Silva
Entra, afogueada do calor, no bar velho da
Faculdade de Letras de Lisboa, com um chapéu azul na
cabeça e óculos escuros por causa das alergias
primaveris. Não era um bom dia para escrever um livro.
Na esplanada, o sol está a pique e Hélia Correia
gosta de escrever com chuva. É um "fenómeno
de corrente de energia", que emerge da mesma forma com
que faz jardinagem ou lê sobre história. Está
a fazer uma pós-graduação em Coimbra,
em cultura clássica e, pela "primeira vez na vida",
estuda a sério. Quando tirou o curso de Filologia Românica,
em Lisboa, no mesmo sítio onde está agora a
beber uma garrafa de água, só ia às frequências.
Hélia Correia assume a sua preguiça
com convicção e acha-se uma "péssima
entrevistada". Diz que tem problemas em elaborar um discurso
inteligível sobre algo que, para ela, acontece "de
vez em quando". Mas fala sobre "Lillias Fraser"
e o sorriso acende-lhe o rosto.
PÚBLICO - "Lillias Fraser"
é considerado o seu melhor romance. Tem a mesma opinião?
HÉLIA CORREIA - Normalmente não gosto dos meus
livros, mas do "Lillias Fraser" gosto. Contudo,
não sei se é o meu melhor romance.
Mas é o livro que mais gosta?
Não, ainda gosto dele. Também gosto do "Montedemo";
ainda. Nem sequer consigo equacionar de qual é que
eu gosto mais, porque já nem sequer tenho todos os
livros que escrevi no pensamento. Para mim, são indivíduos
separados, não fazem parte de um grupo, no qual eu
elejo o que gosto mais.
E de que livros já não gosta?
Há uns que eu não gosto mesmo nada, nada, nada
[risos]: "O Número dos Vivos", o "Soma"...
Isto até é engraçado, porque as pessoas
que gostam deles ficam muito zangadas. Mas o livro é
o livro, caminha sozinho, faz as relações que
quiser. Eu não tenho nada a ver com isso.
Quando estava a escrever esses livros de
que já não gosta, também não gostava
deles na altura?
Nunca gosto quando estou a escrever. Do "Lillias"
sim, de resto não.
Porquê?
... porque não gosto de estar a escrever...
O "Lillias Fraser" revela uma
pesquisa histórica considerável...
Não tem muita. A seguir a esta entrevista, vou
falar sobre ele numa aula do [professor] Manuel Frias Martins
e já lhe disse que vou ter outra vez problemas, porque
as pessoas supõem que o livro tem um pré-texto
que não existe. É sempre um sarilho para explicar
isto.
A Lillias apareceu primeiro?
Primeiro, foi a minha viagem a Culloden e não teve
nada a ver com escrita. Foi um passeio de lazer, um ano antes
de começar a escrever, de busca de raízes, porque
tenho sangue escocês. As afinidades que tenho com aquelas
terras célticas devem-me ter caído todas em
cima nessa viagem e foi por causa desse chamamento que fui
lá.
Como um íman...
Sim, como um íman, muito especial. Mas não entrou
literatura naquilo. Entrou literatura, mas não minha.
Tentámos fazer o percurso pela Escócia que o
[William] Wordsworth e a irmã Dorothy fizeram com o
[Samuel Taylor] Colridge. A Dorothy fez um diário,
de modo que a literatura que houve nessa viagem foi ir atrás
do caminho deles. Como gosto muito de história, quando
tomei conhecimento da tragédia de Culloden adquiri
logo muita informação.
Havia um museu lá?
Há uma parte fechada, mais ao género dos nossos
museus, e um memorial, com o campo propriamente da batalha,
que está intacto. É um monumento impressionante,
ainda muito vivo. Os visitantes são sobretudo americanos
que lá vão em busca das suas raízes.
E depois tive o momento estranhíssimo, de ver aqueles
quatro jovens, cheios de fúria escocesa independentista,
de uma energia fortíssima, vestidos à escocês
pós-Culloden, com o kilt.
No romance, sente-se a energia desse momento...
Sim? Ainda bem! Foi um momento que me impressionou muito,
dentro de todo o itinerário escocês que fiz.
Nessa altura, quis aprender tudo o que havia sobre Culloden.
Não houve uma investigação histórica
posterior.
Quando voltou para Portugal, o que é
que aconteceu?
Não aconteceu nada. Estava escrever outra coisa, uma
novelazinha, que nunca vai ser editada, porque eu ofereço-a
em sacrifício à Lillias. Uma das coisas tem
de desaparecer.
A novela era sobre o quê?
Sobre uma espécie de memória genética
que passa no sangue, isto é, sobre uma rapariga que,
no decurso de uma viagem, feriu a mão num móvel
muito antigo e a embrulhou num pano ensanguentado. A partir
desse momento, foi como se a memória do pano passasse
para o sangue dela e a rapariga começa a ficar completamente
perturbada. Depois há uma viagem de reconhecimento
a um sítio, em que ela devolve o pano e fica em paz.
A novela está acabada, chegou até ao fim.
É a flor que deu origem ao fruto Lillias, um deles
tem de desaparecer. Mas durante a escrita dessa novela, imaginei,
ou melhor, apareceu-me a menina donde proviria o tal sangue,
assim aos "flashes". E depois ela começou
a tomar conta de tudo. Vi-a mais nitidamente, a afastar-se
do campo de Culloden, e comecei a escrever. Ao mesmo tempo,
acabei a novela, porque ainda não tinha percebido na
altura que a Lillias haveria de se transformar em romance.
Apaixonei-me mesmo por ela. Foi das coisas que escrevi com
mais envolvimento pessoal.
Custou-lhe a separar-se da Lillias, quando
acabou de escrever o romance?
É engraçado, pela primeira vez na minha
vida, custou. Acabei o "Lillias Fraser" na minha
casa em Mafra, numa madrugada. Queria oferecer a disquete
no dia seguinte - eram os anos do meu namorado! Fui-me então
deitar, a pensar nela, para escrever no dia seguinte: normalmente,
vejo o seguimento das coisas quando estou a adormecer. Mas
interroguei-me: "E agora vou pensar em quê?"
Foi aí que me apercebi da falta que me ia fazer. Nos
outros livros, o fim da escrita costuma ser um alívio
imenso, mas no caso da Lillias foi diferente.
A Lillias é uma personagem muito
misteriosa, inacessível até, mas percorremos
com ela todos os seus caminhos. Como é que explica
o facto de o leitor sentir uma grande empatia com uma figura
tão opaca?
Não sei. Este não é um romance psicológico,
não revela uma vontade de estar por dentro de um personagem
e ir acompanhando o seu interior. Se ela exerce algum fascínio
sobre as outras pessoas também o exerceu sobre mim,
que a viu de fora. Embora haja momentos em que eu consigo
ver dentro dela, ela salvaguarda-se, inclusive de mim. Estou
tão de fora como as outras pessoas.
"Lillias Fraser" é um romance
histórico?
Acho que não. O romance histórico parte da história
para o romance e aqui a história veio por arrasto,
aliás muito violentamente. Percebi que era a Lillias
no século XVIII...
... um século que odeia...
Sim, detesto-o! Não sei nada sobre o século
XVIII, não gosto dele...
Mas ficou a saber entretanto.
Sim, mas não muito. Quando percebi que isto se passava
no século XVIII, fiquei sem saber o que fazer. Mas
a Lillias estava nesse século e eu tinha de ir ter
com ela, não a podia tirar de lá. Fui para a
Biblioteca Nacional, em pânico, a pensar como é
que ia fazer a gestão de todo o conhecimento que ia
adquirir. Justamente porque não se tratava de um romance
histórico, as coisas não podiam ser debitadas,
tinha de ser algo muito digerido, quase esquecido. Apanhei
um susto com a bibliografia sobre a época pombalina,
porque só o index dos títulos existentes sobre
esse assunto já era, ele próprio, um livro enorme.
Mas aquele não podia ser o caminho. Então optei
por outra coisa, que já conhecia relativamente, porque
tinha lido muita coisa a propósito de Sintra, uma das
minhas paixões. Tinha bastante literatura em casa,
de documentos autênticos, notas de viagem, sobretudo
dos ingleses, que foram quem redigiu mais impressões
sobre o século XVIII português. Comprei mais
um livro ou dois, que tive a sorte de encontrar, com relatos
autênticos sobre o terramoto [de 1755, em Lisboa]. E
limitei-me a isso. A informação que tinha era
essa, não teve como base uma pesquisa exaustiva.
No final do romance, Blimunda Sete-Luas,
personagem do "Memorial do Convento", aparece para
socorrer Lillias. José Saramago salvou a Lillias?
Penso sempre nos livros separados dos autores. Aliás,
quando alguém me pergunta que autor é que eu
gosto, digo sempre que não gosto de autores, mas de
livros. O que é facto é que a Blimunda teve
realmente esse papel de salvar a Lillias, mas eu vejo-a já
muito emancipada do Saramago. Tenho uma relação
muito bonita com ele e gosto muito de muitos dos seus livros.
Mas não é uma procura de "beneplácito
saramaguiano" que vejo quando a Blimunda aparece. Ela
surge por ela, como um ser com vida própria. Podia
ser de outro autor qualquer. Fiquei muito espantada, quando
ela apareceu do fundo de uma casa baixinha com árvores.
A primeira forma da escrita vem primeiro por visões
e depois pela pauta propriamente dita da escrita. Vi a Lillias
entrar, com uns embrulhinhos, umas trouxinhas, nessa casa,
e no fundo da sala havia um vulto. Fiz uma espécie
de "zoom", aproximei-me, olhei para a senhora e
pensei: "Mas esta é a Blimunda, o que é
que ela está aqui a fazer?" Fiquei muito desorientada,
mas ela estava ali e eu não podia fazer nada. Não
andei a puxar pela cabeça, a pensar o que é
que havia de meter naquela altura da história.
E o que fez?
Falei com o José Saramago. Embora os livros sejam os
livros, muito longe dos escritores, há a noção
de direitos de autor. Não podia pegar na Blimunda assim
e por isso falei com ele pessoalmente. Foi uma conversa muito
engraçada, porque não sabia como é que
lhe havia de explicar. Aliás, quando estou a escrever,
fico muito confusa. Disse-lhe: "É uma menina,
no século XVIII, que vem da Escócia para Portugal..."
E ele completa imediatamente a minha frase: "...e encontra
a Blimunda". Disse-lhe que sim e ele achou muita graça.
Foi uma sequência lógica, como se fosse muito
natural a Lillias encontrar a Blimunda, mais velha, claro
(entretanto já tinham passado mais de trinta anos).
É fascinante pensar nisto, porque há uma pessoa
de quem eu gosto muito, que está a trabalhar sobre
a Marquesa de Alorna e a quem eu disse que se calhar a Lillias
e a marquesa se encontraram na rua! A partir do momento em
que a personagem se torna viva, perco a noção
de quem ela é e começo a imaginá-la como
uma pessoa real. Isso dá momentos de ficção
extraordinários.
Como é que trabalha os "flashes"
e as "visões" que tem ao escrever?
O livro não tem uma arquitectura prévia,
é uma deriva. Por exemplo, uma das coisas que mais
admiro é a forma como a Agatha Christie conseguia conceber
uma arquitectura romanesca prévia. Mas eu nem sequer
penso nisso. Eu confio: sei que as coisas vão aparecer
e vou atrás delas.
E quando não aparecem?
Já me tem acontecido várias vezes: as coisas
não aparecem e o romance pára. Comecei vários
romances que não acabei, porque deixou de vir a frase
ou o momento seguinte. Não tenho nenhum controlo sobre
o enredo, nem sobre as personagens.
Está a escrever alguma coisa agora?
Estou a escrever, muito devagarinho. Ontem escrevi uma frase,
vá lá! Fiquei toda contente, já há
muito tempo que não escrevia nada.
É um novo romance?
É uma historinha. Mas não falo do que estou
a escrever.
Porquê?
Por superstição. Uma vez, estava a escrever
um romance, do qual estava a gostar muito, excepcionalmente.
Tinha até uma personagem chamada Violeta, que foi depois
o nome da minha amada gatinha. Uma revista, dirigida pela
Maria Teresa Horta, pediu-me uma pré-publicação.
Dei-lha e o livro desapareceu. Já não consegui
escrever mais nada e tive um desgosto enorme. Agora, não
falo de nada, com medo que aconteça a mesma coisa.
Nunca mais escreveu poesia?
Não... Só escrevo para objectivos determinados,
por exemplo, versos, quando alguém me pede a letra
para uma canção, ou então em circuito
marginal. O último poema que publiquei foi no ano passado,
na editora da minha eleição, a Blacksun.
E teatro?
Não. Não sou dramaturga. Escrevi duas peças
de teatro clássico. Quero ver se escrevo mais uma,
na vida. Mas não tenho a mínima relação
com a escrita teatral, nem com a fala em palco. Aliás,
faço pouco diálogo na ficção.
O que é que está a ler agora?
Leio por temas. Confesso que leio muito pouco dos livros contemporâneos.
Depois, fico com remorsos e leio uma quantidade deles de uma
vez só. Muitos são de amigos meus e não
faz sentido passar ao lado disso. Mas é mais por fôlegos.
Neste momento, estou a reler "Os Irmãos Karamazov",
de Dostoievski, que é uma das grandes minhas paixões,
traduzido por Nina e Filipe Guerra, directamente do russo.
No entanto, não estou a conseguir o encantamento que
tenho quando leio Dostoievski, isto é, uma espécie
de transformação química do Eu, de perda
de identidade. Mas tive isso com o último livro que
li antes deste, o "Retrato do Artista Quando Jovem",
do James Joyce, que é um dos títulos da Colecção
Mil Folhas.
Acha que o leitor de "Lillias Fraser"
teve essa transformação química ao ler
o livro?
Não... Isso só acontece com grandes escritores
e com grandes obras!
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