“A Linha de Sombra”, de Joseph Conrad

Os medos e a coragem de vidas passadas no mar são o pano de fundo deste romance que Conrad, também ele ex-marinheiro, escreveu em 1916

Por Maria José Oliveira

A “linha de sombra” é tortuosa. Estica-se na busca de uma resistência e os avanços acontecem sempre sob sentimentos paradoxais. Há momentos de desalento, decepção, angústia. Há momentos de coragem, de ânimo, de feliz insensatez. “Quer dizer, momentos em que o jovem tende ainda, por força da sua natureza, a praticar actos irreflectidos, como casar de um instante para outro ou abandonar descuidadamente um lugar que ocupava sem ter motivo algum para o fazer.”

Não, “Linha de Sombra”, de Joseph Conrad (1857-1924), não é a história de um matrimónio inconsequente. Mas o jovem narrador, alter-ego de Conrad, apresenta-se na revelação de um acto impensado: abandona o mar, mais de um ano depois de ter embarcado na marinha mercante. “Num dia encontrava-me perfeitamente bem tal como estava, e no dia seguinte já tudo acabara — encanto, gosto, interesse, prazer — tudo... Foi um desses momentos — estão a ver?”

Em terra firme, o trilho daquele momento de precipitação leva-o novamente ao mar. Não recusa a oferta de comandar o navio “Melita” e embarca com uma tripulação de velhos marinheiros. O jovem comandante vislumbra então a “linha de sombra”. Que se torna transparente já em mar alto, quando o desafio enigmático da natureza e a epidemia que grassa entre os marinheiros fazem emergir uma coragem e uma resistência até então adormecidas. Para trás fica o “país da adolescência”.

Vinte dias é o tempo de acção deste romance, narrado pelo outrora jovem numa espécie de monólogo que respiga sensações passadas. Sobre o barco e os homens abate-se um insondável sortilégio — na imensidão do oceano não há sequer uma brisa, uma neblina cerrada envolve o navio, que permanece imóvel, e lá dentro a tripulação não resiste ao delírio provocado pela febre. Sob a escuridão, o jovem comandante desperta assim para uma inexorável coragem, decantada na clareza racional, na disciplina e no sentido do dever. Em contraposição ao caos surgem as forças de aventureiros românticos, personificados na figura quixotesca do comandante, herói que derrota todas as adversidades e salva os marinheiros e o barco.

Joseph Conrad, nascido polaco e registado como Jozef Teodor Konrad Korzeniowski, escreveu “Linha de Sombra” nos finais de 1916. Abandonara a vida de marinheiro há muitos anos atrás para se dedicar exclusivamente à literatura, já obtivera a cidadania inglesa e vivia com a sua mulher, Jessie George, em Capel House, no condado de Kent, Grã-Bretanha.

Era um escritor conceituado e reconhecido pelos seus pares — as obras “O Espelho do Mar”, “Lord Jim”, “O Agente Secreto”, “O Negro do Narciso”, “Coração das Trevas” e “Nostromo” valeram-lhe uma distinção mundial — e, entre o seu círculo de amigos, contavam-se Henry James, Ford Madox Ford, John Galsworthy, Stephen Crane, H. G. Wells e Bertrand Russel. A evidência das suas virtudes literárias não evitavam, porém, que reincidisse em momentos de desespero e depressão — consumia os dias na reescrita dos seus manuscritos, numa tentativa de esconder falhas numa língua, a inglesa, que não dominava totalmente.

Morreu aos 66 anos, 30 dos quais inteiramente dedicados à escrita, e escolheu ser sepultado em Canterbury. Virginia Woolf chamava-lhe “o convidado ilustre” da literatura inglesa e ele sempre tentou rebater os complexos da pátria abandonada com a criação de personagens que enquadravam a típica figura britânica. Uma das críticas que o deixavam mais furioso era a analogia com os escritores russos, que detestava por motivos nacionais. Contudo, nunca deixou de ser visto como um “convidado” da família de autores britânicos. Não se consegue ocultar a alma eslava.