Uma gota de água no mar

É preciso fazer justiça ao romance “A Linha de Sombra”, de Joseph Conrad. Apesar de ter sido remetida a algum esquecimento, é nesta obra que o escritor revela a sua singularidade literária ao envolver o leitor num magnífico e intenso mundo de espantos. Aquele que se vislumbra quando se abandona a juventude.

Por Maria José Oliveira

"We live, as we dream - alone"
(de "O Coração das Trevas")

Fechemos o "portãozinho da infância" e entremos no "jardim encantado". Esse lugar de onde emergem a luz e a sombra, sob os mantos do deslumbramento e da angústia. Essa "linha" ténue que surge na viragem da juventude veemente e espontânea para a maturidade, mais resistente e magnetizante. Há alguém que nos convida a sentir um dos momentos que preenchem esse lugar. Alguém que diz: "Quando meditamos na significação do nosso próprio passado temos a impressão de que ele enche o mundo inteiro em profundidade e em grandeza". Entremos, pois.

Há um barco. E um jovem comandante. E uma tripulação receosa de presságios de um capitão demente que tocava violino e que no alto mar quis morrer e levar consigo o barco e os marinheiros.

Há o mar - transformado em túmulo. E os dias, 20 dias, fechados sobre as trevas que ditam a imobilidade do barco, a brisa inexistente, a febre e o delírio e o cansaço dos homens, a resistência à redenção num combate contra a natureza em estado bruto. Erguem-se muros de escuridão que ocultam o horizonte, a névoa dilui as formas humanas que procuram apoio nas amuradas do convés e o universo irrompe como um inimigo.

Um barco pode ser uma gota de água na imensidão do mar. Chama-se "Melita" e parte rumo aos mares do Oriente. No comando de um grupo de marinheiros de pele curtida está um jovem que pouco tempo antes decidira abandonar o mar, imerso no desalento da fatigante procura de algo "autêntico". A perspectiva de uma nova experiência, porém, afigura-se tentadora e, sob a impetuosidade tão natural da sua juventude, regressa ao mar profundo numa viagem que haveria de desafiar todas as crenças. Todas, excepto uma: a fé inquebrantável nos homens.

É um dilúvio em forma de epidemia que, já em alto mar, se abate sobre a tripulação. Há doses suficientes de quinino para todos os marinheiros, mas o antídoto não basta para a sobrevivência. Sobre o navio resvala uma torrente prenhe de mistérios e espantos: aproxima-se uma névoa sibilina que depois se cristaliza, a brisa deixa de correr e as velas são arriadas, a densa negritude daquele pedaço de mundo ensombra e corrompe os corpos.

A "calma apodrecida" estende-se por 20 dias e o tempo suspenso é por vezes registado pelo comandante num pequeno diário - a escrita também destila coragem. O combate é desigual. As emoções transbordam e a sua dimensão ultrapassa em larga escala os próprios marinheiros. Mas da "Linha de Sombra" irrompe a clareza racional, a disciplina e o dever - fôlegos que impelem o jovem comandante a encetar uma luta nobre contra a "doença" que fez dos seus homens moribundos.

A aventura prolonga-se em dias intermináveis de sofrimento e solidão, mas eis que a tragicidade é conquistada com o regresso do vento e do drapejar das velas. O alento retorna aos rostos dos marinheiros, as súbitas tempestades de trovões desaparecem e o barco cumpre o seu movimento. A bordo do "Melita" a agonia dá lugar a uma vagarosa alegria com o grito de "terra à vista" e o desembarque da ferida tripulação traduz as sequelas de um duelo. Mas há magníficos acasos: "É estranho como ao chegar a terra me impressionou a flexibilidade do andar, a vivacidade dos olhares, a energia vital intensa de todas as pessoas com quem me cruzava", conta o jovem comandante no longo monólogo que é "Linha de Sombra" (1917), de Joseph Conrad (1857-1924).

Que nunca falte a crença nos homens

Viveu duas décadas a navegar e outras três a escrever. Sempre distante da Polónia natal. Pouco tempo depois de ver o mar pela primeira vez, aos 16 anos, Jozef Teodor Konrad Korzeniowski abandona a pátria e a língua materna. Vive em Marselha e em Paris, mas o desembarque definitivo acontece no Reino Unido, que será também o seu lar literário.

O conservadorismo inglês dos finais do séc. XIX enquadra-se na perfeição no feroz espírito reaccionário de Conrad - descendente de uma família da aristocracia rural polaca, o escritor nunca escondeu o seu ódio pela revolução e pelos revolucionários, nomeadamente os anarquistas, e já em Marselha contavam-se entre os seus amigos antigos esclavagistas norte-americanos e exilados monárquicos espanhóis.

Tem 20 anos quando entra na marinha mercante. E sete anos depois, ainda embarcadiço, mergulha na literatura, assumindo a herança da depuração formal de Gustave Flaubert. Escreve em inglês e o parcial domínio da língua há-de manifestar-se em momentos de angústia que se prolongam até ao fim da sua vida.

Restavam-lhe cerca de dez anos no mar quando é nomeado para comandar, pela primeira vez, o navio "Melita". A aventura revela uma experiência tão marcante que surge à superfície de alguns dos seus romances - "Victory" (1914) e "O Agente Secreto" (1907). Mas é sobretudo em "Linha de Sombra" que Joseph Conrad traduz a vertiginosa viagem rumo a Banguecoque. É neste livro, redigido nos últimos meses de 1916, que o escritor-marinheiro revisita o passado marítimo, num regresso feito sob a perspectiva dos "olhos do espírito".

"Trata-se, com efeito, de uma experiência pessoal perspectivada pelos olhos do espírito e tingida desse sentimento de afeição que é impossível deixarmos de sentir pelos acontecimentos da vida de que não temos motivos para nos envergonharmos", escreve Conrad numa nota introdutória.

E, tal como acontece em muitas outras narrativas conradianas, também em "Linha de Sombra" a concepção humana constrói-se a partir de uma fé inabalável na força do Homem - e só assim pode ser compreendida a bibliografia de um escritor reaccionário.