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Um
romance de poesia em bruto
Publicado postumamente, longo, inacabado, "Sinais
de Fogo" é um dos mais portentosos romances portugueses
da segunda metade do século XX. Não há
que ter medo das palavras: estamos perante uma absoluta obra-prima.
A intriga do livro conta-se em poucas palavras.
Um jovem estudante nascido no seio da média burguesia
lisboeta dos anos 30, Jorge (quem ler "Sinais de Fogo"
autobiograficamente passará ao lado da essência
do romance), depois das traquinices próprias da adolescência
com os seus colegas de estudos, vai, como era habitual, passar
as suas férias de Verão à Figueira da
Foz. A Figueira - com "diversas Figueiras pequeninas",
"umas latentes no fundo do ser, outras evidentes"
e em que "em cada uma delas é possível
amar-se uma pessoa, por razões próprias deste
mundo" - é o espaço geográfico central
do livro, que regressará, mais tarde, à capital.
Jorge vai para casa do tio, Justino, um "bon-vivant",
jogador inveterado de cartas ou no casino, "seguindo
com os olhinhos a bolinha da roleta", que sem nunca ter
conseguido seguir a carreira militar tinha tido um caso amoroso
rocambolesco que o marcará para toda a vida. Por isso,
em casa, tio e tia dormiam em quartos separados e Justino,
quando podia, dava uma saltada ao quarto da criada mais apetitosa
ou mais à mão.
Jorge não arriba à Figueira num
dia qualquer: "Quando cheguei à Figueira, a estação
era um tumulto de espanhóis aos gritos, com sacos e
malas, crianças chorando, senhoras chamando uma pelas
outras, homens que brandiam jornais, e uma grande massa de
gente comprimindo-se nas bilheteiras."
Em Espanha rebentara a revolução.
Jorge não se impressiona. Sai o mais rapidamente de
casa dos tios à procura de Odette, que fora sua "de
graça". Odette estava no Porto "por conta
de um ricaço...".
Desanimado, Jorge vai à procura dos
seus amigos de férias. Há personagens para todas
as variações do ser e estar. Uma coisa, porém,
os une: a descoberta do amor, da(s) mulhere(s), sejam elas
prostitutas ou sérias, que começa logo no início
do livro com uma orgia noctívaga, a libertinagem, a
raiar o pornográfico.
À espreita - assumido também
pela homossexualidade de Rufininho -, estamos perante um romance
de iniciação: "Eu era uma criança.
Os meus amigos eram umas crianças. Todos nós
era como se tivéssemos afinal só dezasseis anos
ainda. E não seria que quase todos os homens continuavam
assim?"
Com a Guerra Civil de Espanha como pano de
fundo, eis que aparecem em casa do tio Justino dois espanhóis.
Contra a pardacenta ditadura do senhor de Comba Dão
("Está tudo depravado. Razão tem o governo
em dizer que chegou a hora da limpeza. O Salazar, agora, vai
pôr tudo na ordem"), Justino faz ponto de honra
em protegê-los, preparar o salto, por barco, para Espanha,
com a colaboração de uma personagem menor do
romance, um funcionário do Partido Comunista Português,
e a morte de um amigo que participa na fuga.
Porém, o eixo central do romance é
a explosão de uma paixão: a de Jorge por Mercedes,
que já se adivinhava no Verão anterior. É
em torno dela que vai desaguar toda a poesia bruta (brutal
mesmo) de "Sinais de Fogo".
"Eu queria-a minha, por que preço
fosse"
Entregando-se a dois homens ao mesmo tempo,
Mercedes, que está noiva dos amigos de Jorge, abre
um sinal de fogo indizível que acompanhará Jorge:
há uma obsessão e uma ultrapassagem a que Jorge
não resiste. Mesmo que o Almeida a possuísse,
Jorge remói, sangrando: "Que o diabo levasse tudo
o que quisesse, todas as preocupações, todos
os ciúmes, todas as palavras dadas por conta dele.
Eu queria-a minha, por que preço fosse." Almeida
podia ir com ela para a cama e, na mesma tarde, Jorge também
se entregaria a ela.
Quando está com os amigos, ou vê
o mar, ou quando pratica mais orgias - mesmo retirando delas
prazer -, o seu ser (e o nada dele) são permanentemente
transfigurados em efabulações constantes, umas
de carácter filosófico-metafísico, outras
de prosa poética que se lançam à poesia
no sentido literal do termo: "Sinais de fogo, os homens
se despedem, exaustos e tranquilos, destas cinzas frias. (...)
um breve instante, gestos e palavras, ansiosas brasas que
se apagam logo".
Não é verdade, não se
apagam. Mesmo quando tudo acaba e Mercedes parte para o Porto
- e Jorge se interroga, e nós com ele ainda hoje: "Sabes...
a gente conheceu-se cedo de mais, ou tarde de mais" -,
são "as ansiosas brasas" da poesia que ecoam.
Em verso: "Oh meu amor, de ti, por ti, e para ti,/ recebo
gratamente como se recebe/ não a morte ou a vida, mas
a descoberta/ de nada haver onde um de nós não
esteja."
Já em Lisboa, na companhia de Luís
(o marinheiro que quer perder as graças no mar, não
o da Figueira nem o da pesca do bacalhau, mas o mar do mundo),
a voz de Jorge ecoa, agora em prosa, como se fosse um instrumento
que, no meio de uma orquestra, envolvesse todo o tempo e espaço:
"Depois, deitado na cama, sentia-me a arder (....) Não
me sentia, porém, doente, nem sabia que estava vivo
ou morto, nem isso tinha importância. Mesmo o dizer
que eu 'estava' não é exacto, porque na suspensão
de ser, que era a minha, o 'estar' não tinha sentido
algum."
Fulgurante, Jorge de Sena, já no fim
do romance, toca, subtilmente, mais uma vez no teclado: "Só
me diriam alguma coisa outros versos, os livros que relatassem,
mesmo imaginosamente, a vida."
"Sinais de Fogo" está
entre esses versos. E a vida. |
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