O Encontro Inesperado no Café Âncora D'Ouro
"Eu era um jovem licenciado em Direito e estava na ilha de Moçambique como juiz quando conheci o Jorge de Sena, em 1972. Foi um acidente e uma das aventuras mais empolgantes, mais marcantes da minha vida. Ele dedicou-me um carinho e uma atenção muito sensíveis e particulares: teve a amabilidade, a humanidade de achar piada a um menino de 20 e poucos anos, com uma pequenina biblioteca que levei dentro de uma mala para a ilha de Moçambique.

Passeámos e conversámos muito nesse primeiro encontro. Foi, aliás, o Jorge que me explicou, com a abundância de detalhes que ele punha sempre em tudo, a arquitectura da ilha de Moçambique, as falsas esquinas, as badanas das janelas...

Ele tinha ido a Moçambique fazer uma série de conferências e aproveitou para realizar uma peregrinação às pedras da ilha de Moçambique, onde esteve o Camões, um pedaço de terra muito marcado pela história.

Depois, não nos vimos mais: ele vivia nos EUA e eu exilei-me no Brasil. Quatro anos depois, o Jorge veio a Portugal e deu uma conferência na Associação Portuguesa de Escritores. Fui assistir. Estava num canto da sala após a conferência, convencido de que ele nunca me reconheceria. O Jorge viu-me e fez-me sinal. Fiquei aflito. Abraçou-me e invectivou-me com alguma força: 'Por onde é que tem andado? Nunca mais soubemos nada de si! Por favor, vá falar à Mécia! [viúva de Jorge de Sena]'

Foi a partir desse reencontro que nasceu a ideia de fazer um primeiro filme, não sobre o Jorge de Sena, como veio a ser o 'Sinais de Vida', mas com o Jorge de Sena. Era o filme que gostaria de ter escrito com ele, a partir da adaptação de um conto seu, 'O Bom Pastor'. Nunca tive possibilidade de concretizar esse projecto.

Uma das imagens mais intransmissíveis da minha vida - e jamais algum dia me atreverei a fazê-lo em imagem cinematográfica - é quando um dia entrei no café Âncora d'Ouro, na ilha de Moçambique, e não consegui aproximar-me do Jorge de Sena porque ele estava a escrever um poema. Ele estava sozinho e eu senti fisicamente que havia uma barreira invisível, mas sensível, em volta dele. Aquele homem, de facto... Havia um lado humano absolutamente transbordante. Era espantoso, o Jorge de Sena. Uma das grandes injustiças é esse mito de ser conhecido como irascível. Nada disso: poucas pessoas conheci na vida tão humanas e tão atentas ao próximo."