Aldous Huxley
Deus não é compatível com as máquinas

Mais do que uma sátira à sociedade industrializada, “Admirável Mundo Novo” é o espelho dos medos da biociência ou da máquina ao serviço do homem. Este é o pesadelo de Aldous Huxley.

Por Raquel Ribeiro

Num edifício cinzento, o director do centro de incubação guia os alunos – provavelmente de casta Alfa – pelas instalações, exibindo as maravilhas do processo Bokanovsky. Estamos em 623 A.F., iniciais de “After Ford”, que é o mesmo que dizer depois de Ford, ou depois do modelo T de Henry Ford.

O director explica: “Um ovo, um embrião, um adulto: o processo normal. Mas um ovo bokanovskizado tem a propriedade de germinar, de proliferar, de se dividir. Desenvolvem-se assim noventa e seis seres humanos onde antes apenas se desenvolvia um só. O progresso.”

Este é o “Admirável Mundo Novo” que o escritor britânico Aldous Huxley (n. 1894) imaginou em 1931: um mundo onde os homens se apaixonaram pelo progresso, em que todos têm o que desejam, porque a possibilidade de desejo é controlada desde a incubação; um mundo de clones divididos por castas (Alfa, Beta, Gama, Delta), separadas por cores, especificamente condicionadas para o consumo e produção em massa.

Aqui vive-se o momento, não há futuro, não há sonhos. A felicidade é o elemento vital da estabilidade social. Não há mães, pais, maridos e amantes, famílias – essas obscenidades. Não há lares. Ninguém chora perante a morte ou a perda das paixões violentas. Não há amor.

“O mundo estava cheio de pais e, por consequência, cheio de miséria; cheio de mães e, por consequência, de toda a espécie de perversões, desde o sadismo até à castidade; cheio de irmãos, de irmãs, de tios, de tias – cheio de loucura e suicídio”, diz Mustapha Mond, um dos dez administradores da ordem mundial.

“Os indivíduos que governam o 'Admirável Mundo Novo’ podem não ser sãos de espírito, mas não são loucos, e o seu fim não é a anarquia, mas a estabilidade social”, explica Huxley no prefácio à obra, em 1946.

Desses indivíduos produzidos em série há um, Bernard Marx, de casta Alfa-Mais, que se recusa a tomar o soma (o antídoto da estabilidade). Na vertigem de uma súbita consciência do seu eu, parte com Lenina Crowne para uma Reserva no Novo México, o último reduto do planeta onde ainda há amor. No regresso, depois do contacto com “os horrores” dos incivilizados, decidem trazer um rapaz, o Selvagem, e mostrá-lo ao mundo novo. Mas as coisas não correm bem: o rapaz não aceita que, neste mundo, não haja Deus, nem Shakespeare; não aceita que as mulheres não se casem com os homens, que o sexo seja a mera satisfação dos desejos; não aceita que se viva assim, alheado do mundo, imerso na sonolência da História.

As escolhas da civilização
“Venho trazer-lhes liberdade”, diz o Selvagem quando irrompe pela sala de distribuição de soma. A indignação é geral – as pessoas nunca poderão compreender por que dá aquele homem bizarro tamanho espectáculo por dois gramas de soma.

O “soma”, a pílula da felicidade, é a droga sedativa da civilização, a âncora a que todos se agarram quando querem esquecer os problemas, e o Selvagem recusa-se a embarcar no consolo da imbecil felicidade universal.

“Não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o autêntico perigo, quero a liberdade, quero bondade, quero o pecado”, diz o Selvagem. “Você reclama o direito de ser infeliz”, responde-lhe o administrador.

Assim seja. Mas neste mundo, Deus e a Arte não são compatíveis com a felicidade dos homens. Estamos no último patamar da ciência: a juventude e a prosperidade são as palavras de ordem. A mudança, como revolução, é subversiva, por isso, evitada.

“Deus não é compatível com as máquinas, a medicina científica e a felicidade universal. É preciso escolher. A nossa civilização escolheu as máquinas, a medicina e a felicidade”, diz o administrador.

No confronto entre o Selvagem e o mundo novo – ou entre o homem e a máquina – é preciso, de facto, escolher: viver perigosamente à mercê da angústia da civilização ou dominado pelo autoritarismo dos estados.

Em 1931, Huxley não sabia o que seria o futuro. Mas, 70 anos depois, os medos que durante a segunda metade do século XX assombraram as consciências dos homens, diz Huxley, poderão vir a ser uma realidade. “É provável que todos os governos do mundo venham a ser mais ou menos totalitários”, escreve, no prefácio. “Só um movimento popular em grande escala, tendo em vista a descentralização e o auxílio individual, poderá travar a actual tendência para o estatismo.”

O Selvagem escolheu o homem, mas acabou trucidado pela obsessão dos curiosos, como num inevitável espectáculo de televisão. Não foi possível aguentar a pressão do mundo contemporâneo, onde todos passam pela vida ao de leve, sem deixar rasto, em nome da estabilidade social, do trabalho e do poder da máquina – em nome de quem? No “Admirável Mundo Novo”, os nossos sonhos e as nossas esperanças foram domesticados, controlados, medicados. Os outros tomaram conta de nós. E nunca mais saberemos o que é o amor.