Edith Wharton “O amor impotente”

Era um tempo de atenção às etiquetas, aos rituais da elegância, à exibição da decência. A elite de Nova Iorque estava tão rotinada em evitar as coisas desagradáveis que, às vezes, perdia a flor da vida. Deixava-se estar. Abdicava do amor.

Por Luís Miguel Viana

Logo na primeira frase — “Numa noite de Janeiro no início dos anos 70, Chistine Nilsson cantava o ‘Fausto’ na Academia de Música em Nova Iorque” — Edith Wharton traça o ambiente romanesco, social e histórico de “A Idade da Inocência”. É pela porta da ópera que se entra no quotidiano da melhor sociedade novaiorquina do último quartel do século XIX, a mesma que vivia lado a lado com a cidade enlameada, desregrada e violenta dos “gangs” do último filme de Martin Scorsese, numa época em que as principais dores de parto da nacionalidade começavam a dissipar-se. É um tempo de reforço dos alicerces económicos da alta burguesia norte-americana, que irá dominar o mundo. E de afirmação do seu estilo próprio de sofisticação, dos seus códigos mundanos, dos seus rituais de classe.

A narrativa de “A Idade da Inocência” inicia-se a partir do olhar de Newland Archer, um dos filhos predilectos dessa “velha” Nova Iorque que se reunia ao princípio da noite de casaca e vestido comprido. Newland é um promissor cavalheiro que seduz pela elegância com que conjuga a jovialidade da “nova geração” com o cumprimento integral de todas as convenções em que a vida da elite da cidade está moldada. É atentíssimo à forma “como as coisas se devem fazer”. Faz parte de um mundo organizado para proteger o seu estatuto, onde se teme mais um escândalo do que uma doença, onde se coloca a decência acima da felicidade, onde a exibição pública das emoções é considerada de mau gosto e, pior, simplória.

Newland Archer, que conhecemos no encanto dos vinte e poucos anos, fresco como uma rosa, está prestes a anunciar o noivado com a não menos encantadora May Welland, filha de uma família tão rica e distinta como a sua. Ela é alta, loura, tem músculos tensos, cintura fina, e transporta consigo um sorriso feliz de ninfa que parece pertencer tanto ao seu rosto como os líquidos olhos azuis. O que mais agrada a Newland na noiva, porém, é a sua determinação em levar às últimas consequências o ritual, em que ambos tinham sido educados, de ignorar “o desagradável”. O namoro não é perturbado por arrebatamentos sentimentais, mas antes dominado pela ideia de construirem a “paz”, a “estabilidade”, uma sofisticada “camaradagem” entre cônjuges.

Este projecto de casamento perfeito é perturbado pela controversa chegada da Europa da condessa Ellen Olenska, outra filha daquela sociedade, ainda prima de May. A condessa Olenska chega após um acontecimento terrível (para o meio): separara-se, ou melhor, abandonara o marido, o conde, que era “um bruto”. Deixara o casamento, permanecera uns meses na Europa (o que levantou rumores) e, agora, regressava “a casa”.

A controvérsia da sua chegada não se deveu ao acolhimento que os Lovell-Mingott lhe deram — apesar de tudo os nova-iorquinos não eram insensíveis à solidariedade familiar. A controvérsia deflagrou quando estes decidiram levar aquela mulher, refirase que muito bela, para a vida social como se não houvesse uma separação! O sentimento geral foi sintetizado por Mr. Sillerton Jackson quando, espreitando pelo binóculo na ópera, a viu sentada no camarote da família — “Não pensei que os Mingotts se atrevessem”, murmurou.

O abismo da ambivalência
Pouco a pouco, todavia, a condessa reintegra-se. Não sem reparos, nomeadamente por se apresentar com peças longas da costura europeia, por vezes de veludo vermelho, com peles negras e brilhantes a envolverem-lhe o pescoço, produzindo algo de perverso ao usar à noite, em salões aquecidos, essa mistura provocante de colo coberto e braços nus. Ela, na verdade, era diferente: tece comentários irreverentes sobre Nova Iorque com uma simplicidade desarmante, quebra regularmente tabus sociais, assume a dor que é rever-se naquele absurdo. Tem um projecto improvável: “Quero ser livre, quero apagar o passado.” O seu aspecto e tom de voz, com uma leve dureza nas consoantes, envolvemna numa inacessibilidade suave que acaba por fascinar Newland Archer. Fascina-o, não pelas mesmas razões porque ele escolhera May Welland para noiva, mas precisamente pelas contrárias.

Newland mergulha então no abismo da ambivalência, oscila entre sociedade em que sempre acreditou, e da qual May faz parte, e a possibilidade de a superar, de que a passagem de Ellen Olenska é um luminoso sinal. Oscila, mas não se decide. Ou antes, vai decidindo não decidir. Ama, mas sente-se impotente. Deixa-se tomar pela inércia que o prende à normalidade do “seu meio”. May, com quem entretanto casa, também ajuda a esse desenlace. Ela possui os fabulosos recursos das sonsas — a voz clara, a solicitude de esposa, a doçura de feitio, arazoabilidade das exigências. Também ela é, dentro do género, uma mulher notável.

A “Idade da Inocência” é um romance sobre personagens que sentem a vida a fugir-lhes dentro da estufa dourada onde, com requinte e elegância, vão passando os dias. Há nos diálogos tantos detalhes psicológicos que sentimos distintamente o coração dos homens a parar no preciso instante em que se torna claro que os seus sentimentos são conhecidos. E é como se vissemos o brilho das lágrimas eminentes (que nunca rolam) quando as mulheres jogam os destinos em conversas civilizadas, serenas, em salas forradas com veludo e madeiras exóticas.

Edith Wharton faz na “Idade da Inocência”, tal como na maior parte da sua obra, uma crítica irónica e demolidora às convenções da sociedade elitista que ela, filha de uma abastada e elegante família de Nova Iorque, conheceu bem. Os pormenores de ambiente, esses, são tão ricos que definem uma época e uma sociedade com uma perfeição que a literatura poucas vezes alcançou.