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“O
Senhor Ventura”, de Miguel Torga
Escrito em 1943, “O Senhor Ventura”
dá a conhecer um novo Miguel Torga, mais ousado e fantasista.
A obra deixou-o “embaraçado” e decidiu
votá-la ao esquecimento. Só em 1985 descobriu
a ternura do livro
Por Maria José Oliveira
Mais de 40 anos de silêncio. Durante
décadas, um livro foi ostensivamente esquecido e renegado
pelo seu autor. A novela fora escrita aos 36 anos, instigada
por uma imaginação vertiginosa e impudica. Mas
o voo errante e imprevisível da história acabaria
por esbarrar contra a incompreensão do criador. O escritor,
editor dos seus livros, remeteu, assim, para um longo esquecimento
o “devaneio” literário. Até aos
78 anos.
Em 1985, “O Senhor Ventura” conhece
a sua 2ª edição, mais de quatro décadas
depois da edição inaugural. Miguel Torga (1907-1995)
redescobre a novela e resgata-a do abandono com um olhar enternecido
e nostálgico. “Acabei por descobrir que, mais
do que anatematizar maceradamente certos erros, o melhor é
compreendê-los na sua circunstância e tentar minorá-los”,
escreve Adolfo Correia da Rocha (nome de baptismo de Torga,
nascido em S. Martinho de Anta, em Trás-os-Montes)
no prefácio.
Aos 78 anos, Miguel Torga entende que nenhum
criador deve legar uma obra repudiada. Por isso, retoca a
narrativa — “limpeia das principais impurezas,
dei um jeito aos comportamentos mais desacertados” —
e “O Senhor Ventura” renasce sobre a confissão
de que a espontaneidade e a imaginação da novela
são a “única ponta por onde se lhe pode
pegar”. Torga sabe que o livro é um tanto ou
quanto marginal na sua bibliografia, mas admite que o sentimento
irreprimível que originou “O Senhor Ventura”
não teve sequência. “Confesso que nunca
mais tive experiência igual”.
Assume contornos quixotescos a personagem que
dá nome ao livro e que o leitor acompanha desde a sua
meninice, na aldeia de Penedono, no Alentejo. Da planície
alentejana, onde foi pastor, até às remotas
paisagens orientais, onde chega a comercializar armas e droga,
o andarilho “Senhor Ventura” protagoniza uma odisseia
“portugesmente verosímil”, na qual o tempo
corre fluido e os cenários geográficos variam
velozmente, de acordo com o inexorável arbítrio
do herói.
Impregnado de uma liberdade comparável
àquela que Torga prodigalizou nesta novela, o “Senhor
Ventura” começa por desertar da tropa em Macau
para, logo depois, seguir rumos tão imprevisíveis
quanto perigosos. A fúria de viver e a parcial ausência
de critérios perante a diversidade da vida fazem deste
homem um herói trágico, cujo destino parece
estar traçado desde a primeira página. E é
apenas na exaltação da tragicidade que o leitor
habitual de Torga pode descortinar elementos da ficção
torguiana. Tudo o resto, desde a consistência psicológica
do “Senhor Ventura” até à narração
sumária, desvia-se dos cânones literários
do escritor. Por isso, é um novo Miguel Torga aquele
que se concebe através do livro.
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