O remorso, para sempre
Por Clara Viana

Neste livro publicado nos meses finais da II Guerra Mundial nada parece ter redenção. Muito menos a culpa. Ou a condenação de permanecermos irremediavelmente estranhos aos outros.

Está tudo na frase que Simone de Beauvoir foi buscar a Dostoievski para servir de epígrafe à sua segunda novela: “Todos somos responsáveis por tudo perante todos.” A ser assim, como viver com o sangue que outros derramaram? Seja em anunciadas revoluções, na guerra ou na expulsão do feto que não se deseja.

Jean Blomart, o protagonista a quem Beauvoir emprestou as palavras em “O Sangue dos Outros”, optou por aceitar a culpa que o possuíra desde criança, como sempre possuíra a mãe. Apenas pela razão de existir.

Filho de uma família burguesa, como Simone de Beauvoir, o jovem Jean pensou, contudo, que podia escapar, abraçando não só uma causa, como uma explicação para o mundo. Início dos anos 30 em Paris, “... tudo parecia então tão simples, pobre rapaz inocente. Levantava o punho; cantava em coro: ‘Amanhã a Internacional será toda a humanidade’. Mais guerra, mais desemprego, mais trabalho servil, mais miséria. Morte aos homens de má vontade e alegria sobre a terra. Pulverizava idealmente o velho mundo e reconstituía com os pedaços partidos um universo novo”.

Só que nunca nada é assim tão simples, como também descobriu Jean, pouco tempo depois de se ter inscrito no Partido Comunista: Jacques fora morto a tiro e tinha sido ele a entregar-lhe a arma que levou à manifestação. De novo e irremediavelmente habitado pela culpa, torna-se num homem entre duas noites. A da morte de Jacques e essa outra, vários anos depois, que dá corpo a este livro publicado em Janeiro de 1945.

A noite em que vigia a morte de Hélène, a jovem mulher que acabou por amar, também ela atingida a tiro numa operação da resistência.
A noite em que, por isso, apenas lhe é permitido o passado. Mas o passado para Jean é quase em exclusivo preenchido pelas coisas que ele fez que afectaram outros. Neste trajecto encontrou também Beauvoir uma forma de ilustrar o drama da necessidade do outro para alguém se constituir como sujeito. Era um hábito seu, este de traduzir enunciados filosóficos por via de histórias, reais ou imaginárias. No caso, uma desilusão para a companheira de Sartre: quando foi publicado, a filosofia passou ao lado da maioria dos que leram o livro, então apresentado como uma novela sobre a guerra e a resistência. Em Janeiro de 1945, com a II Guerra Mundial ainda em curso, não poderia ser de outro modo. Por essa altura, Simone de Beauvoir ainda não tinha proclamado ao mundo que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, a fórmula mágica de “O Segundo Sexo”, o livro que, em 1949, a tornou a precursora de todos os feminismos. O escândalo foi imediato, a fama também. Mas as militâncias, dela e de Sartre, começariam um pouco mais tarde. De regresso aos anos da guerra, dir-se-á que era também impossível escapar à culpa. Já antes, Jean voltara a descobri-lo com a morte de Jacques. Por via dela, tornara-se num ex-comunista, sindicalista e pacifista por inacção. Desejava a derrota de Franco na guerra civil espanhola, mas proibira-se a si próprio qualquer gesto que influenciasse outros, porque “sabia para sempre que não é possível fixar os limites de um acto”. Revoltava-lhe a anexação da Áustria pelos nazis, mas recusava a guerra ou a revolução.

Argumentava que “é fácil pagar com o sangue dos outros”, embora a guerra não fosse para ele “um escândalo sem igual”. Apenas “uma das formas de conflito para que eu involuntariamente tinha sido atirado ao ser atirado para esta terra. Porque nós existíamos uns pelos outros e, no entanto, também cada um por si: porque eu era eu e, no entanto, era para eles um outro”. De novo o dilema de base para Beauvoir, inde pendente das voltas do mundo, mas que a Jean, seu personagem, impedia também a aceitação simples do amor. Muito antes de ter exposto, em “A Cerimónia do Adeus”, a decadência física e mental de Sartre nos seus últimos tempos de vida, escreveu Beauvoir, daquele que foi o seu companheiro por mais de 50 anos: “Existiu na minha vida um êxito certo: as minhas relações com Sartre.” Em “O Sangue dos Outros”, Hélène queria esse trunfo para si, mas Jean não lho permitiu senão pouco tempo antes da sua morte, ocorrida vários anos depois de ela ter tropeçado nele.

A jovem obcecada por si própria sucumbira por fim à necessidade de agir pelos outros. Sobretudo por Ruth, a criança judia que vira ser arrancada à mãe em pleno Paris. Por essa altura também já Jean abandonara o seu pacifismo. O espectáculo da colaboração fora superior ao que podia aguentar. Começava a resistência e, também, a morte de Hélène. “O preço nunca seria caro de mais”, pensou Jean, agora activo, mas para sempre possuído por uma culpa para a qual não encontrará solução, como descobre nessa noite em que vigia a morte de uma mulher.