“O Sangue dos Outros”, de Simone
de Beauvoir, na Colecção Mil Folhas

Em 1954, muitas décadas depois de ter abandonado, contra a sua vontade, a sua amada Rússia, Vladimir Nabokov (1899-1977), termina o manuscrito de “Lolita”. No país de exílio, os Estados Unidos, entrega cópias do romance a quatro editoras. Todas recusam — alegam escândalo, obscenidade, eventual processo criminal. Nabokov, embora tivesse feito muitas renúncias ao longo da sua vida, não desiste. Envia o livro para uma pequenina editora, Olímpia Press, em Paris, onde vivera até 1940, e o editor não recusa o romance.

Há alguém que está a morrer e outro alguém que se interroga: a guerra, a resistência, mas antes de tudo a culpa. De se ser o que se é. A despeito dos outros? Ou por causa dos outros?

É um peso, tamanha culpa. Mas que outra coisa seria de esperar de um livro escrito durante a II Guerra Mundial? Ainda por cima de um livro escrito em França, embora a culpa francesa seja apenas uma das muitas que enformaram esse período que destruiu mais de metade da Europa.

“Nessa noite, uma grande aragem de festa passava sobre Paris; as pessoas cantavam e riam abertamente, os apaixonados andavam abraçados: tínhamos entregado a Checoslováquia à Alemanha, e dizíamos que tínhamos declarado a paz a todo o mundo”, recorda, sobre os acordos de Munique, Jean Blomart, o atormentado protagonista de “O Sangue dos Outros”, numa altura em que também a França estava já ocupada pelas tropas nazis.

Publicada em Paris, em Janeiro de 1945, esta segunda novela de Simone de Beauvoir estava condenada a ser lida como um livro sobre a guerra e a resistência francesa a ela. É este o contexto em que se mexem os personagens do livro, mas a companheira de Sartre terá ficado desiludida com a leitura “imediata”. A guerra, a resistência, seriam, para ela, apenas as condições externas, embora extremas, que ajudariam a revelar o dilema filosófico da constituição do sujeito que pretendia subjacente à narrativa.
“(...) A injustiça não estava no rancor de Paul; estava no coração do meu ser, nesta maldição tantas vezes pressentida, tão selvaticamente renegada: a maldição de ser um outro”, reconhece Jean, na noite em que vigia a morte da jovem mulher que descobriu amar. Também por acção das balas, noutra noite, vários anos antes, morrera-lhe um amigo.

A culpa levara-o à inacção; a culpa catapultara-o de novo para o confronto: “Aprendi nesta guerra que o sangue que poupa é tão inexplicável como sangue que se faz correr.” Só que o remorso era, em definitivo, a sua condição de existência, uma herança directa da mãe que justificaria, nela, aquele ar de estar sempre “a pedir desculpa”.

Existem seres assim, apesar de Simone de Beauvoir sempre ter negado a esta segunda novela a colagem às pessoas que habitavam a sua vida, tão frequente na obra que criou. Quando foi publicado este seu livro da culpa, Simone de Beauvoir tinha 37 anos e deixara pouco tempo antes de leccionar na Universidade da Sorbonne, onde se manteve até 1943, já com a França ocupada. O escândalo e a fama viriam pouco depois, com “O Segundo Sexo”. Com ele, o “Castor”, como lhe chamava Sartre, iria transformar-se na “mater” do feminismo.