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O amor é o paraíso perdido
"Lolita" é uma história
de amor. Dramática e triste, é certo, mas uma
história de amor perseguida pela negritude, que envolve
a relação entre um homem de meia-idade, Humbert
Humbert, e uma rapariguinha de 12 anos, Lolita. A mestria
de Nabokov está precisamente nesta intensa tragédia:
de como o amor se pode transformar em algo aberrante. Por
Maria José Oliveira
Em 1950, Vladimir Nabokov já quase desistira
de escrever em russo. Mais uma renúncia na sua vida,
depois de tantas outras. Depois da dor, ensombrada pelo desespero:
a fuga da amada pátria; o pai assassinado por fascistas,
em 1922, em Berlim; a morte do seu irmão mais novo,
Serguei, num campo de concentração nazi, acusado
de ser um espião ao serviço de Grã-Bretanha;
a noiva, Tamara, abandonada em São Petersburgo; a ocultação
da sua identidade em várias obras escritas entre Berlim
e Paris, sempre assinadas com o pseudónimo Sirin; os
exílios, primeiro em Berlim e Paris, depois nos EUA
e, finalmente, na Suiça.
Em 1950, Nabokov adoptara já a língua
inglesa. Era professor de literatura, entediava de morte os
seus alunos — detestava quase todos os grandes nomes
da literatura mundial e traduzia esse ódio reduzindo,
por exemplo, “A Metamorfose”, de Kafka, ao estudo
da anatomia do insecto em que se havia transformado Gregor
Samsa —, ainda jogava ténis, demonstrava sem
pudor a sua insolência. Era petulante e irónico.
Nos meios literários norte-americanos, tinha fama de
misantropo. E insistia na solidão: sentia-se verdadeiramente
feliz, dizia, nesses momentos que reservava para caçar
borboletas, jogar xadrez, traduzir Pusckin e Lermontov. Nunca
teve vergonha de admitir a sua incapacidade expansiva, a sua
dificuldade em falar em público: “Penso como
um génio, escrevo com um autor distinto e falo como
uma criança”.
Em 1950, Nabokov estava já casado com
Vera Slonim. Há 25 anos. Tiveram apenas um filho, Dmitri.
Quando era jovem, não escapava à fama de mulherengo,
mas, ao que se sabe, sempre foi fiel a Vera. A mulher que,
um dia, em meados desse ano, atentou num estranho comportamento
do marido e impediu, com a sua perseverança, que os
primeiros capítulos de “Lolita” se perdessem
para sempre: Nabokov preparava-se para queimar, no jardim
de sua casa, os manuscritos do romance. Sentia-se invadido
por dúvidas e queria libertar-se rapidamente dessa
teia de incertezas, dessa ausência de convicções.
Vera conseguiu detê-lo a tempo. Mais tarde, diria o
escritor, sentia-se eternamente grato à mulher, pois
entrevia que o fantasma do livro o assombrasse durante o resto
da sua vida. Confessou: “Escrevo por duas razões:
por prazer, destino ou êxtase e para me livrar do livro
que comecei a escrever”.
Em 1950, Vladimir Nabokov ainda não tinha alcançado
grande notoriedade. Apesar de ter publicado vários
títulos, um tanto ou quanto desprezados pela crítica.
Prodigalizava já uma escrita vertiginosa e nada mais
o irritava do que a classificação “simples
e sincera” com a qual elogiavam a sua escrita. Para
ele tudo era artifício, fingimento. “Na arte
mais elevada e na ciência o pormenor é tudo”,
dizia, comprovando nos seus livros que os pequenos instantes
confluíam numa escrita magnetizante. Onze anos antes,
demonstrava isso mesmo em “O Encantador”, livro
escrito em russo, que envolve um homem de meia-idade, uma
ninfeta francesa e as paisagens de Paris e da Provença.
Poderá ter sido uma primeira “palpitação”
de “Lolita”, mas o escritor reafirmou que era
remota a ligação entre os dois romances. Ambos,
porém, denotam a atracção de Nabokov
por personagens tão inocentes quanto negras: não
é tão patético esse pedófilo que
quando ama admite o horror?
Em 1950, Humbert Humbert vivia com Rita, uma jovem com 24
anos. Encontrara-a num bar algures entre Montreal e Nova Iorque,
estava ela embriagada. Ambos viviam a amargura do desalento
e decidiram partir sem rumo. Durante dois anos viajaram juntos,
sobre rotas de degradação.
Humbert perdera o rasto de Lolita e, em Novembro
de 52, morre na prisão, vítima de uma trombose.
Faltavam alguns dias para o seu julgamento. Assassinara Clare
Quilty, o homem que “raptou” Lolita do “circuito
do Paraíso”, o homem das mil-caras que enganou
e tornou a enganar um “ingénuo” e apaixonado
Humbert. Antes havia descoberto Lolita: vivia algures no Alasca,
numa casa miserável, estava casada com Dick, um mecânico
desempregado, e tinha uma criança.
Era uma Lolita já muito distante da
adolescente mimada que conhecera, sem qualquer laivo de ninfeta.
Humbert sente-se perdido, uma vez mais. O amor que lhe dera
não era esquisito, era cruel. Vivia da auto-punição
de Humbert e da licenciosidade de Lolita. A morte de Quilty
surge como a redenção. A concretização
da “justiça poética”, do acto que
poderá exorcizar a perda de Lolita.
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