História de um assassino desiludido
com o amor
Por Diego Armés dos Santos

Com “Diário de um Killer Sentimental”, o autor chileno Luis Sepúlveda regressa ao género policial através do relato na primeira pessoa de um profissional que se apaixona e que sente uma irresistível curiosidade pela sua próxima vítima.

Luís Sepúlveda é, antes de mais, um exímio contador de histórias. Do conto infantil ("História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar") ao relato de viagem ("Patagónia Express"), passando pelo estilo policial ("Nome de Toureiro") ou pelo romance de contornos clássicos ("O Velho que Lia Romances de Amor"), Sepúlveda é capaz de transformar um leitor desprevenido num refém da sua escrita agradável e fluente, a um tempo simples e inteligente. Em "Diário de um Killer Sentimental", o autor volta a viajar pelo género policial. Um assassino profissional que nunca falha conta a sua própria história.

Quem espera encontrar neste livro uma compilação organizada de introspecções e teorias existencialistas acerca dos sentimentos de um "killer", desengane-se. "Diário de um Killer Sentimental" é um relato na primeira pessoa, preenchido pontualmente pelos pensamentos mais íntimos de um mercenário desiludido com o amor.
O "killer" — ou o "profissional", como o próprio se auto-intitula — chega a Madrid para receber uma "encomenda". Na viagem de táxi para o hotel, a personalidade do "profissional" é amplamente exposta: a conversa do taxista acerca do Europeu de Futebol provoca no “killer” o desejo de lhe acabar com a vida. Contudo, este impulso é travado por dois motivos: a ausência de uma pistola e, acima de tudo, o código de conduta — "um profissional não se envolve aos tiros com um cretino, mesmo taxista".

Ainda em Madrid, chegado ao hotel, o "killer" recebe as chaves do quarto e um envelope. É neste envelope que se encontra a fotografia da sua próxima "encomenda", um homem entre os trinta e os quarenta anos. Ao olhar para a fotografia, o "killer" deixa no ar uma indicação de tragédia: por um qualquer motivo estranho, sente curiosidade acerca da sua vítima — quando uma das regras mais importantes do seu código de conduta é nunca se envolver com as "encomendas". Momentos depois, é quebrada uma segunda regra elementar:

segundo o próprio "killer", "um profissional vive sozinho. Para aliviar o corpo, o mundo oferece-lhe uma enorme quantidade de putas". Esta regra fora escrupulosamente cumprida até ao dia em que conheceu uma "gata" francesa — bastante mais nova e de curvas acentuadas — que lhe deu a volta à cabeça e com quem passou a viver. Após umas férias no México, a "gata" deve aterrar em Madrid daí a poucas horas para que os dois se encontrem. Mas não chega.
Ao que parece, a "gata" francesa deixou encantar-se pelos atributos de um mexicano e tudo o que chega ao hotel em Madrid é um fax explicando a situação de uma forma abreviada. Neste momento o "killer" — que até à data fora irrepreensível na execução das suas tarefas — passa a ser uma personagem fragilizada e desconcentrada. E os motivos são dois: um mau pressentimento acerca da "encomenda" e a desfeita da sua "gata". O lado sentimental fica mais exposto. Um homem pode ser profissional, mas não é feito de gelo.

Os erros e descuidos vão-se sucedendo ao longo da história, chegando mesmo ao ponto de perder soberanas oportunidades de eliminar a sua vítima — tudo isto numa perseguição à vítima que percorre várias cidades da Europa e termina... no México (pelo meio ficam várias viagens de táxi semelhantes à primeira).

Começa a instalar-se algum desconforto entre o "killer" e quem lhe requisita os serviços, sendo o mau desempenho compensado apenas pelo seu exemplar historial. Por decisão da "entidade" que contrata os serviços do "profissional", este será o seu último trabalho. Os tempos que se seguem serão de reforma — antecipada, na perspectiva do "killer". Mas nesta actividade não podem correr-se riscos. Por outro lado, o facto de ser o seu último serviço desperta no "killer" a ambição e o capricho que sempre lhe caracterizaram a carreira. As últimas balas serão especiais... e nem ele próprio imagina o quanto.

Com o "killer", Luís Sepúlveda cria uma personagem selvagem num mundo absolutamente civilizado. Segundo o autor, "ele come nos melhores restaurantes, tem dinheiro, faz negócios, conduz automóveis de luxo e, no entanto, é um assassino feroz". Sepúlveda faz passar a imagem rude da personagem essencialmente através dos seus diálogos, especialmente com os que mantém consigo próprio, ao espelho. O facto de o "killer" utilizar um vocabulário repleto de expressões como "ameixa" (bala), "fusca" (pistola), "profissional" ou "gata" confere-lhe ainda uma imagem por vezes risível.

O "profissional" é, de facto, uma personagem de excessos: leva uma vida de luxo graças à sua profissão, que consiste, no fundo, numa actividade animalesca se for traduzida pela imagem de um jogo entre presa e predador, sendo que o predador é o mais impiedoso e eficaz do seu meio — a eficácia só é afectada quando surge o elemento desestabilizador: a mulher. Importa destacar que na obra de Sepúlveda as personagens femininas mais acarinhadas e dignas de respeito são, na sua maioria, prostitutas. Nesta história cumpre-se a tradição: o "killer" cai em desgraça quando se dedica a uma só mulher.