|    Comentário 
                    A Invenção do Mal  
                    José Vítor Malheiros 
                  "O Deus das Moscas" é, de 
                    alguma forma, um livro fruto da sua época, um pós-guerra 
                    que viu as barbaridades dos fascismos e da Segunda Guerra, 
                    o Holocausto, a bomba, o estalinismo e a tensão da 
                    Guerra Fria e ainda não tinha experimentado o bem-estar 
                    do crescimento económico que viria.  
                  Um numeroso grupo de crianças vai dar 
                    a uma ilha deserta e vê-se obrigado a sobreviver pelos 
                    seus próprios meios. A ilha é um paraíso 
                    tropical coberto de vegetação, algures no Pacífico, 
                    onde as árvores estão permanentemente carregadas 
                    de frutos, onde há água doce em abundância, 
                    onde a praia de areia branca está protegida dos perigos 
                    do mar alto pelo arco perfeito de um recife de coral, onde 
                    não há animais selvagens nem outros perigos 
                    visíveis.  
                  A história podia ser uma aventura de 
                    Robinsons, cheia de engenho e energia juvenis, de solidariedade 
                    e de produtiva camaradagem, mostrando a vitória do 
                    homem sobre si próprio e sobre os elementos, uma história 
                    de sobrevivência capaz de nos fazer sonhar, como a literatura 
                    juvenil já nos deu tantas. Mas "O Deus das Moscas", 
                    de William Golding, não é nada disso. Há 
                    um perigo que ameaça os novos habitantes da ilha e 
                    esse perigo é o mais impiedoso dos predadores: eles 
                    próprios.  
                  "O Deus das Moscas" é um romance 
                    pessimista onde o homem - no seu formato mais inocente, a 
                    criança - é colocado em confronto consigo mesmo 
                    e perde. Perde mesmo quando tudo à sua volta conspira 
                    para que ganhe, quando o mundo não é inóspito, 
                    quando o clima não é inclemente, quando a sociedade 
                    não é repressiva, quando os recursos não 
                    são escassos. Estas crianças britânicas, 
                    civilizadas, disciplinadas, educadas, lançadas neste 
                    éden terrestre, vão reinventar o mal e o medo. 
                   
                  O quadro mais amplo da narrativa não 
                    é mais optimista. Golding coloca a sua história 
                    num contexto de guerra - talvez mesmo de hecatombe nuclear 
                    -, apenas sugerido em duas ou três pinceladas para não 
                    nos fazer divergir a atenção do "huis clos" 
                    da ilha. A dado momento, uma criança faz mesmo uma 
                    referência ao risco de poderem ser feitos prisioneiros 
                    pelos "vermelhos" (o livro foi publicado em 1954), 
                    para nos dar uma pista quanto aos protagonistas do conflito, 
                    mas tudo isso se passa longe da geografia e da mente das crianças 
                    e não perturba o quotidiano da ilha.  
                  Para o quadro da sua fábula (porque 
                    se trata de uma fábula sobre a maldade intrínseca 
                    do homem) Golding inspirou-se em "Coral Island" 
                    (1858) de R.M. Ballantyne, que é aliás citado 
                    em "O Deus das Moscas". E o livro também 
                    faz pensar em "Dois anos de férias", de Jules 
                    Verne, raramente citado em relação a "O 
                    Deus das Moscas" por razões de Canal da Mancha. 
                    Mas onde nos outros livros se encontra esperança e 
                    optimismo, Golding substitui-os por um enraizado cepticismo, 
                    que também se encontra nas suas outras obras ("The 
                    Inheritors", 1955; "Free Fall", 1959; "The 
                    Spire", 1964). "O homem produz o mal, como uma abelha 
                    produz mel", dizia Golding (1911-1993), que conquistou 
                    o prémio Nobel da Literatura em 1983.  
                  "O Deus das Moscas" desenvolve-se 
                    ao longo de um crescendo onde os resquícios de civilização, 
                    da disciplina do antigo mundo habitados pelos miúdos, 
                    vão desaparecendo ao mesmo tempo que se desfazem os 
                    farrapos dos seus uniformes de colégio, para dar origem 
                    a uma redescoberta da selvajaria. A violência de "O 
                    Deus das Moscas" não nasce da necessidade de sobrevivência, 
                    da fome, da auto-defesa, da defesa do território e 
                    muito menos das pulsões sexuais ou da defesa da família. 
                    A violência floresce, ritualmente, para esconjurar um 
                    medo irracional, como forma de afirmação própria 
                    e do grupo, fruto de rivalidades internas, gratuitamente, 
                    estupidamente, sem causas que se possam chamar razões. 
                    A nova sociedade que nasce na ilha não tem inocência 
                    nem aprende com os erros da anterior.  
                  "O Deus das Moscas" é, 
                    de alguma forma, um livro fruto da sua época, um pós-guerra 
                    que viu as barbaridades dos fascismos e da Segunda Guerra, 
                    o Holocausto, a bomba, o estalinismo e a tensão da 
                    Guerra Fria e ainda não tinha experimentado o bem-estar 
                    do crescimento económico que viria. Mas o livro, com 
                    as diversas leituras que pode suscitar (reinvenção 
                    do pecado original, crítica do poder, apelo ao humanismo), 
                    tornou-se uma referência incontornável e continua 
                    a inspirar novas abordagens.   
                   
                    
                   
                      
                   
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