O Som e a Fúria
William Faulkner



 

A Trágica Saga dos Compson
Por Luís Miguel Queiros
Quarta-feira, 23 de Outubro de 2002

"O Som e a Fúria", de William Faulkner, é um dos mais revolucionários romances do século XX, comparável à "Recherche", de Proust, ou ao "Ulisses", de Joyce. É a história da decadência de uma família do Sul dos Estados Unidos, ou talvez "a tragédia de duas mulheres perdidas", como afirmou o próprio autor. Mas é também, sobretudo, a invenção de uma nova e poderosa linguagem.

Muito anos após ter escrito "O Som e a Fúria", William Faulkner afirmou, numa entrevista, que o livro nascera de uma imagem: uma rapariguinha empoleirada numa pereira, com as cuecas sujas, olhando a morte - mais precisamente, um funeral -, enquanto os seus irmãos, menos temerários, esperavam por ela no solo. Verdade seja dita, antes desta versão, já contara várias outras. Mas terá gostado da ideia de ver nas cuecas inocentemente encardidas de uma criança a antecipação simbólica da promiscuidade adolescente de Caddy Compson, que é, de algum modo, a personagem central de "O Som e a Fúria".

O romance narra o inexorável declínio de uma família da velha aristocracia sulista, os Compson, desde os últimos anos do século XIX até 1928. O livro foi publicado em 1929 e só muito mais tarde, em 1946, é que o autor lhe acrescentou o seu actual apêndice, no qual fornece alguns breves lampejos da história da família em datas anteriores e posteriores a este período. Na interminável bibliografia crítica que a obra suscitou, um dos raríssimos pontos de consenso é mesmo este: Faulkner retrata a decadência de um clã familiar outrora orgulhoso dos seus pergaminhos.

O que não quer dizer que seja necessariamente esse o tema central do livro. Alguns sublinham a importância de motivos como a honra e o pecado, outros vêem na saga dos Compson uma ilustração da condição humana, um ser arremessado ao tempo e que procura, em vão, um ponto de referência capaz de dar algum sentido à caótica contingência que é existir. Para o próprio Faulkner, trata-se da "tragédia de duas mulheres perdidas, Caddy e a sua filha".

Neste e noutros romances do autor, pressente-se a ideia de que o passado é, como o futuro, meramente potencial, algo que só adquire realidade quando o encarnamos no presente, quando pesa sobre o que somos e dita o que pensamos e fazemos. Talvez esta seja uma chave possível para explicar a peculiar estratégia discursiva a que Faulkner recorre em "O Som e a Fúria".

Nas três primeiras secções, narradas sucessivamente pelos três irmãos Compson - o primeiro é um atrasado mental de 33 anos, idade na qual já se quis ver uma alusão a Cristo -, os bruscos e dilatados saltos no tempo são uma constante. Mas se o passado só existe enquanto actualização no presente, como o romancista parece sugerir, o conceito de cronologia deixa de fazer sentido.

Revolucionar a ficção contemporânea

Outro juízo mais ou menos partilhado pela crítica é o de que Faulkner procurou escrever de acordo com o fluxo natural do pensamento das suas personagens, uma técnica a que os anglo-saxónicos chamam "stream of consciousness". E tudo leva a crer, de resto, que a própria produção do romance obedeceu a um processo semelhante. Não se encontraram no espólio do escritor quaisquer apontamentos relativos ao livro, à excepção de uma folha onde Faulkner rabiscou uma sucinta estrutura cronológica de alguns dos principais acontecimentos narrados em "O Som e a Fúria". Aparentemente, nunca existiu nada de parecido com um plano prévio da composição geral do romance.

André Bleikasten, professor de Literatura Americana na Universidade de Estrasburgo e um dos mais reputados especialistas contemporâneos na obra de Faulkner, não tem dúvidas em o colocar no reduzido cânone dos autores que revolucionaram a ficção contemporânea, a par de Proust, Joyce, Beckett e poucos mais. E acredita que só Kafka se lhe compara "nessa espécie de densidade imaginativa, que nenhum outro autor do século XX logrou atingir". Um dos motivos que, ainda segundo Bleikasten, os torna a ambos narradores profundamente intrigantes, é o facto de as suas histórias serem tão misteriosamente simples que, de algum modo, não chegam a fazer sentido. Mas, conclui, enquanto os leitores de Kafka são assaltados, logo nas primeiras páginas, por um mundo que está para além do entendimento e no qual nenhum homem poderá alguma vez sentir-se em casa, já para os leitores de um romance de Faulkner esta é uma constatação que só lhes ocorre após terem acabado o livro, quando "todo o som e toda a fúria já se esgotaram".

A propósito do título que escolheu para o livro, Faulkner afirmou que este lhe "surgira do inconsciente" e que, embora tivesse tido a noção de que se tratava de um passo de "Macbeth", não lhe ocorreu, na altura, que o resto da frase se adaptava igualmente bem à sua história. A ser verdade, é extraordinário, já que não se poderia exigir um resumo mais pertinente deste romance do que o que fornece a citação integral: "A tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing" ("uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, sem sentido algum").