Boneca de Luxo
Truman Capote



 

"Holly Golightly, C'est Moi"
Quarta-feira, 16 de Outubro de 2002

Truman Capote foi um dos escritores mais virtuosos do seu tempo, mas também um genial promotor de si próprio e um sedutor nato. A sua vida ficou prescrita com o livro "Boneca de Luxo", inspirado na jovem actriz Holly Golightly. Ele próprio. Por Ricardo Dias Felner

Norman Mailer, intelectual maldito de ironia refinada, descreveu-o assim: "Não conheço bem o Truman Capote, mas gosto dele. É espalhafatoso como uma tia mas, à sua maneira, é um tipo com tomates, e é o escritor mais notável da minha geração, escreve as melhores frases, palavra por palavra, ritmo sobre ritmo". O elogio foi feito a propósito do romance "Boneca de Luxo". O que não é irrelevante. O livro a que Mailer "não mudaria duas palavras" representa uma espécie de autobiografia ficcionada e é a obra mais marcante da bibliografia de Capote, juntamente com "A Sangue Frio", que o celebriza e inscreve na história, e "Súplicas Atendidas", que o precipita para a decadência.

A história de uma jovem provinciana que viaja para Nova Iorque em busca do estrelato e do luxo mas que acaba por sucumbir precocemente perante a celebridade é o próprio arco da vida de Truman. Sugestionado por Flaubert, seu ídolo, o autor norte-americano poderia, por isso, ter declarado com toda a propriedade, relativamente à personagem principal de "Boneca de Luxo": "Holly Golightly, c'est moi". À semelhança da bela actriz criada pelo autor, Capote viu-se sem os pais muito novo e arriscou cedo o salto para a grande cidade em busca da fama; como Holly Golightly, Truman Capote era simultaneamente leviano e perspicaz e valeu-se sempre mais do poder de sedução, da excentricidade, da autopromoção, do que do que da sua produção artística, quase sempre irregular.

Se "Boneca de Luxo" confirma o génio literário do seu primeiro livro, "Other Voices, Other Rooms", publicado em 1948, a sua inscrição na história da literatura contemporânea só aconteceria, contudo, com "A Sangue Frio" (1966), êxito que o aclamaria como figura indelével do chamado "novo jornalismo". Para escrever o livro, Capote passou seis anos a investigar o homicídio de uma família numa aldeia do estado de Kansas, realizando dezenas de entrevistas, inclusive, aos próprios autores dos crimes.

O escritor reivindicaria para si a descoberta de uma nova forma de arte literária com "A Sangue Frio". E deu-lhe um nome "à Capote": "novela de não-ficção". As técnicas utilizadas eram, todavia, basicamente as já conceptualizadas pela corrente do "novo jornalismo", um género consagrado sobretudo nas páginas da revista "The New Yorker", nos anos 60 e 70, em que os autores - entre os quais se destacavam Tom Wolf, Norman Mailer ou Joseph Michell - ousavam abordagens psicológicas e literárias sobre os factos.

Truman não partilhava, naturalmente, esta opinião, sublinhando diferenças notórias. Numa entrevista concedida ao "The New York Times", precisamente em 1966, respondeu sem rodeios quando lhe perguntaram o que achava do "novo jornalismo": "Se se refere a James Breslin e Tom Wolf, e a essa malta, eles não têm nada que ver com jornalismo criativo, no sentido em que eu uso o termo, porque nenhum deles, nem nenhuma escola de jornalismo, tem o equipamento técnico próprio da ficção. Não vale a pena um escritor, cujo talento é essencialmente jornalístico, tentar a reportagem criativa, porque simplesmente não irá funcionar". E acrescentou: "O autor deve deixar a sua imaginação correr livremente sobre os factos. Se pareço arrogante, não é apenas porque tenho que proteger o meu bebé, mas porque verdadeiramente não acredito que alguma coisa parecida com isso [a "novela de não-ficção"] exista na história do jornalismo".

Fama e fortuna

Nesse ano de glória, Truman foi várias vezes à televisão, concedeu dezenas de entrevistas e começou a passar férias em iates e mansões. O auge da fama e fortuna que "A Sangue Frio" representara para o escritor seria concretizado no mítico baile "a preto e branco", que deu em honra da directora do "Washington Post", Kay Graham, no Plaza Hotel. O evento, para o qual foram convidados 500 (seleccionadíssimos) convidados, mereceu uma cobertura da imprensa superior à dedicada às cimeiras internacionais.

Inebriado pela euforia que sentia à sua volta, o excêntrico e travesso escritor, assumidamente homossexual, não demorou tempo a anunciar a pretensão de publicar um novo marco literário, superior a "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust - uma crónica dos excessos e luxos do "beau monde" que ele conhecia tão bem. O livro seria mais uma vez proclamado como uma inovação: "uma variação sobre o romance". E o título foi conhecido com muitos anos de antecedência. "Súplicas atendidas" era o extracto de uma citação de Santa Teresa: "São derramadas mais lágrimas pelas súplicas atendidas do que pelas que não o são".

Acontece que, cada vez mais dependente do álcool e das drogas, o escritor passou por uma forte crise produtiva nos anos que se seguiram, parecendo dar razão aos seus detractores, que diziam que a "novela de não-ficção" era pouco mais do que uma "solução literária para romancistas fatigados sofrendo de falta de imaginação". Só nove anos depois de "A Sangue Frio", Capote começou a publicar alguns capítulos da obra na revista "Esquire". A reacção foi tremenda. No livro, Truman Capote relatava pormenores sobre a vida sexual de artistas famosos, bem como outras bizarrias.

Ainda que a obra só fosse publicada em livro em 1986, dois anos após a morte do autor, o seu editor e amigo, Joseph M. Fox, recorda que, imediatamente após a publicação dos primeiros capítulos na "Esquire", "todos os amigos o votaram virtualmente ao ostracismo por ter contado, de maneira pouco velada, histórias reservadas". Muitos deles nunca mais lhe voltaram a falar. O seu biógrafo, Gerald Clark, jornalista da "Time" e seu antigo vizinho, escreveria em "Capote, A Biography", que Truman "não jogou segundo as regras, não entendendo que o seu estatuto entre os ricos era o de um 'outsider' tolerável, um bom entretenimento" - "era suposto que os celebrasse, não que os expusesse".

Truman teria um fim triste, sem glória. O que é mais terrível, nesse trajecto decadente, é que o próprio acabou descrente de si, terminando a carreira derrotado. "Lentamente, mas com alarme crescente, pus-me a ler todas as palavras que tinha publicado e dei-me conta de que nunca, nem sequer uma vez em toda a minha vida de escritor, tinha conseguido fazer explodir toda a energia e excitação estética que o material continha", disse. A declaração é uma confissão da preguiça. E aproxima-o novamente a Holly Golightly, quando esta desabafa: "Sabia perfeitamente que nunca viria a ser uma estrela de cinema. É muito difícil".