Morte em Veneza
Thomas Mann



 


Thomas Mann
Paixão e Sacrifício
Luís Miguel Queirós

Na Veneza do início do século XX, um escritor de meia-idade deslumbra-se com a beleza transcendente de um rapaz de 14 anos, sacrificando a esta paixão a sua lucidez e a sua dignidade

Em 1912, quando publica "Morte em Veneza", Thomas Mann tem 37 anos e goza já de assinalável reputação como escritor. Publicara dois romances - "Os Buddenbrook" (1901) e "Sua Alteza Real" (1909) - e uma série de novelas, incluindo a pequena obra-prima que é "Tonio Kröger", originalmente editada, juntamente com outras cinco histórias, em "Tristan" (1903).

O protagonista de "Morte em Veneza" é um escritor de meia-idade, Gustav von Aschenbach, que se apaixona, em Veneza, por um rapaz de 14 anos. Apesar de lhe faltar o ânimo para sequer dirigir a palavra ao adolescente, deixa que ele se torne o centro da sua existência e sacrifica-lhe todas as convicções morais e estéticas pelas quais norteara a sua regrada vida burguesa.

As circunstâncias biográficas que Mann transpõe para a sua narração da tragédia de Aschenbach são conhecidas. Em Maio de 1911, acompanhado da sua mulher, Katia, o escritor passou alguns dias em Veneza. Tal como o protagonista de "Morte em Veneza", chegaram de "vaporetto", e, tal como Thomas Mann descreve na novela, ia a bordo "um velho vestido e maquilhado de forma escandalosa, rodeado de rapazes que faziam muito barulho e diziam asneiras". As palavra são de Katharina Mann, que, nas suas memórias, sublinha outras coincidências entre a realidade e a ficção: desde o gondoleiro que desaparece sem receber o preço da passagem, porque trabalha sem licença, passando pelo funcionário inglês da agência de turismo que os avisa da epidemia de cólera, até ao encontro com Tadzio. "Um rapaz de cerca de treze anos, encantador, belo como o dia, sempre vestido com um fato de marinheiro". Assim o descreve a mulher de Thomas Mann, que confirma que o marido "sentiu um fascínio imediato por esse adolescente e não cessava de o observar na praia", embora, acrescenta, "não o tenha seguido por toda a cidade", como Aschenbach fará na novela.

Mas, ao contrário do seu herói, o romancista abandona Veneza quando toma conhecimento de que a cólera alastra. Também não dispunha, é certo, da razão que levou Aschenbach a permanecer, uma vez que o Tadzio real já tinha abandonado a cidade na véspera.

Mais de meio século após este encontro, a filha de Thomas Mann, Erika, recebe uma carta de um aristocrata polaco, Wladyslaw Moes, que lhe dá conta do divertido espanto que sentiu quando lhe chegou às mãos, oferecida por pessoa amiga, uma versão polaca de "Morte em Veneza". Explicando não ter a menor dúvida de que o Tadzio do livro é ele próprio, reconhece a precisão com que Mann descreve toda a sua família. Investigações posteriormente levadas a cabo por um tradutor polaco da obra de Thomas Mann, Andrezj Doegewski, e pelo autor britânico Gilbert Adair, parecem confirmar a reivindicação de Moes, que tinha 11 anos - e não 14, como o Tadzio da novela - quando atraiu a atenção do romancista.

A partir destas informações biográficas, tender-se-ia a identificar Gustav von Aschenbach com o próprio Thomas Mann, o que seria uma dedução apressada. Sem dúvida que existe uma forte dimensão autobiográfica nesta novela, como, de resto, em várias outras obras de Thomas Mann, com destaque para "Doutor Fausto" (1947). Mas o compósito Aschenbach tem também traços de Goethe - o episódio da paixão tardia do poeta por uma jovem de 17 anos terá sido, segundo o próprio Mann, uma das fontes de inspiração iniciais de "Morte em Veneza - e do compositor Gustav Mahler, cujo nome próprio partilha. No filme de Visconti (ver texto ao lado), o protagonista é um compositor que tendemos a identificar com Mahler, dada a presença obsessiva da sua música na banda sonora.

Yourcenar aplica a Mann o termo "realismo filosófico" para sublinhar o modo como, na sua obra, "o instante histórico se vai unindo cada vez mais explicitamente a uma noção cósmica de eternidade. "Morte em Veneza" não foge à regra. No dividido Aschenbach digladiam-se duas perenes e contraditórias pulsões do humano. Um tema que Herman Hesse retomará em "Demian" (1919) - romance pelo qual Thomas Mann expressou a sua admiração - e em "Narciso e Goldmundo" (1930), onde o asceta e racional Narciso e o instintivo e sensual Goldmundo são duas faces da mesma personagem.

O modo como Mann, ao longo da novela, nos reenvia constantemente para figuras e episódios da mitologia grega, não só amplifica o drama pessoal de Aschenbach, como reforça a sensação da sua impotência perante um destino que vem sendo repetidamente cumprido desde tempos imemoriais.