Era bom
que trocássemos
umas ideias
sobre o assunto
Mário Carvalho



 

Talento e Humor
Por Luís Miguel Queirós
Quarta-feira, 25 de Setembro de 2002

"Era Bom Que Trocássemos Umas Ideias Sobre o Assunto" conta-nos as aventuras e desventuras, mais as segundas do que as primeiras, de um homem que quer aderir ao PCP e que não consegue. E, também, as aventuras e desventuras, mais as primeiras do que as segundas, de uma jovem de ignorância exemplar que quer ser jornalista. E que consegue.

O humor, o humor que nos faz rir literalmente, e não apenas esboçar um cúmplice sorriso mental, é pouco frequente na ficção portuguesa contemporânea. Talvez seja essa a primeira coisa a sublinhar em "Era Bom que Trocássemos umas Ideias Sobre o Assunto", de Mário de Carvalho. Quem levar este livro para ler no café corre sérios riscos de atrair as atenções da clientela.

Joel Neves, cujo insólito "middlename" é Strosse, redige ofícios e pareceres - ou redigia, mas isso de momento é secundário - numa fundação que dá pelo nome, não menos insólito, de Helmut Tchang Gomes. Está-se em plenos anos 90 e anima-o o propósito, também ele razoavelmente insólito, de aderir ao PCP. O partido, necessitado de vocações como de pão para a boca, decide, não obstante, e trocadas algumas poucas ideias sobre o assunto, fechar-lhe a porta na cara. Mais insólito do que isto, só se um bispo mordesse um cão, o que, de resto, também ocorre neste livro. Gesto que, diga-se em abono do bispo, devemos considerar, à luz das circunstâncias, isento de qualquer deliberada crueldade.

Um dos vários motivos que concorrem para a grave decisão existencial que Joel Strosse Neves intimamente assume em página incerta, e que expressa na página 54 - "Vou aderir ao PCP" -, prende-se com o seu filho, Cláudio, que afinal não está no Canadá e que manteve uma breve ligação com uma jornalista videirinha chamada Eduarda Galvão, aluna de Jorge Matos, que tem um quadro de Delacroix que afinal é outro quadro de Delacroix e que ficou de tratar da filiação no PCP do já referido Strosse, cujo superior hierárquico, o dr. Rui Vaz Alves, licenciado em Antropologia Analítica, na Suíça, com uma tese sobre "As Disposições das Alminhas nas Encruzilhadas do Alto da Beira", frequenta as discotecas da Avenida Vinte e Quatro de Julho, o que virá a revelar-se um hábito de consequências funestas, não tanto para o próprio, mas para o dito Strosse, por via do filho, que, como afinal não está no Canadá, dificilmente poderia tratar do despacho de uns tótens índios, ou esquimós, ou lá o que é. Presume-se que o essencial do enredo fique assim suficientemente claro, e não convém adiantar de mais, para não estragar o suspense. Mas se o leitor é desses que gosta de tudo explicado ao pormenor, podemos sempre trocar algumas ideias sobre o assunto.

Além das personagens por assim dizer já apresentadas, figuram ainda um controleiro do PCP, ou coisa assim, que vive com um periquito incontinente e com uma tia que não se contém de o contradizer perante as visitas, uma funcionária comunista, Vera, que acaba por trocar menos ideias sobre o assunto - seja ele qual for - do que as que estaria disposta a trocar, um camarada, Baptista, que troca ideias compulsivamente, mesmo que não haja assunto, um escritor abjeccionista que afirma trocar de bom grado Dostoievski pelo grande mestre russo Boris Karlof - ou talvez só quisesse lançar a confusão, mas isso é já outro assunto -, e, para ficarmos por aqui, um professor de grego que conduz um Bentley e cuja falecida mulher tivera como amante um palerma qualquer, do qual pouco se fica a saber. Em rigor, não é sequer seguro que fosse palerma, ou que, sendo-o, fosse um palerma indiferenciado, já que quem ajuiza é o viúvo, e o narrador não confirma nem desmente.

E já que se traz à baila o narrador, diga-se que não deve haver nenhum género de narrador identificado pela teoria que o narrador deste livro, num ou noutro momento, não assuma. Às vezes é quase naturalmente omnisciente, lê pensamentos, adivinha intenções. Outras vezes, para se desincumbir de uma tarefa tão simples como a de dar testemunho do que se passa numa sala, vê-se obrigado a contrariar a lei da gravidade, equilibrando-se desconfortavelmente num canto do tecto.

Um livro hilariante de um virtuoso da língua portuguesa.