Era bom
que trocássemos
umas ideias
sobre o assunto
Mário Carvalho



 

"Sou Pouco Comunicativo, Sou Rápido a Ouvir, Não Sou de Conversas"
Quarta-feira, 25 de Setembro de 2002

Entrevista com Mário de Carvalho

"Era Bom que Trocássemos Umas Ideias sobre o Assunto" é um livro cheio de referências intertextuais, caricaturas, humores e derivações. Brinca e joga deliberamente com o leitor, utilizando o riso como uma forma de dar a "intenção trágica, talvez amarga", de certas situações. O 19º título da Colecção Mil Folhas foi o pretexto para uma conversa com o seu autor, Mário de Carvalho. Por Marisa Torres da Silva

Como é que se consegue juntar, numa só obra literária, o PCP, a Igreja Católica e o jornalismo? A resposta está toda no livro "Era Bom que Trocássemos Umas Ideias sobre o Assunto", publicado em 1995. No meio de algumas considerações sobre fenómenos sociais portugueses, está a história de um homem que quer aderir ao Partido Comunista, depois de um passado mais ou menos obscuro e perante um presente mais ou menos infeliz. A intervalar as diligências e os esforços empreendidos pelo aspirante a militante comunista, encontramos uma série de personagens também elas caricaturais - entre as quais, Jorge de Matos, um professor e dramaturgo céptico, Eduarda Galvão, a jornalista dotada de uma "genialidade secundária", Vera Quitério, que tem a mania de fazer festinhas nas caras das pessoas e que pronuncia com bastante frequência a frase "era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto." A propósito deste divertido romance, Mário de Carvalho falou sobre o humor, o jornalismo actual, o seu processo de escrita, os leitores e Álvaro Cunhal como autor.

PÚBLICO - "Era Bom que Trocássemos Umas Ideias Sobre o Assunto" é assumidamente caricatural, e "contém particularidades irritantes", sublinha a contra-capa. Qual é a necessidade dessa advertência prévia para o leitor?
MÁRIO DE CARVALHO - Através do livro todo, há uma série de jogos com o leitor, que estão contidos no texto e também no chamado paratexto, ou seja, as epígrafes do livro, como por exemplo, a de Sá de Miranda ou a de Camilo Castelo Branco. Não é por acaso também que se assume que todas as personagens são especialmente carregadas. Caricatura, como sabe, vem do italiano, de "carica", que quer dizer carga. Isso significa que é uma outra forma de utilizar aquela fórmula muito habitual em ficção: "Os acontecimentos narrados são puramente ficcionais. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência".

Portanto, as personagens do livro não correspondem a ninguém em particular, são uma espécie de amálgama de expressões, de modos de ser...

São personagens não do mundo real, mas do mundo ficcional, mundos que eu distingo aliás com muita insistência e muita determinação.

Utiliza frequentemente o humor. É uma forma de tornar as coisas mais presentes para o leitor ou um modo de escapar à realidade?

Talvez uma forma de dar a intenção trágica, talvez amarga, de certas situações. Curiosamente, alguns dos escritores da grande literatura são escritores cómicos. Basta pensar em Cervantes, Sterne, Swift, ou o nosso Eça de Queirós, ou no Camilo Castelo Branco, quando nos fazem rir, deliberadamente. E isso é uma forma de nos dar o outro lado das coisas. Está para sair uma nova tradução de um livro do qual eu gosto muito, "Almas Mortas", de Nikolai Gogol, que é um autor também ele humorista. É um livro que nos faz rir praticamente do princípio ao fim. Entretanto, quando o autor comentava o livro com um outro escritor russo, Alexander Púchkin, este disse-lhe: "É tão triste, a nossa Rússia..." Muitas vezes, este riso e esta vontade de rir podem subentender amargura e tristeza. Penso que o autor é sensível a isso. O riso é um modo de dar o outro lado das coisas, a sua "carga", o seu peso.

Por que razão a figura do jornalista, incorporada na hilariante personagem de Eduarda Galvão, recebe um tratamento menos simpático da parte do autor? É uma caricatura do jornalista actual?

Não me diga que nunca encontrou nenhuma Eduarda Galvão... [risos]. A Eduarda é a personagem central, talvez a mais importante do romance. De certo modo, ela desencadeia todas as ligações entre as outras personagens. Quis mostrar que há uma certa forma de fazer jornalismo, mais comum agora entre os jovens jornalistas - destituídos de escrúpulos, com um conhecimento básico das coisas, que se integram no pensamento único, na formatação dos pensamentos, utilizando o lugar-comum, a frivolidade, a artificialidade...

Já se cruzou com muitas Eduardas Galvão ao longo do seu percurso?

Sim, sim. Sobretudo nos últimos tempos. Há um tipo social muito utilizado em literatura, que se chama "o Videirinho" e que se refere à pessoa que é capaz de fazer tudo para manter as aparências e subir na vida, com uma ambição completamente desmedida, renunciando a qualquer tipo de ética ou de escrúpulos. Eduarda encaixa-se nesse tipo social. E, se pensar bem e olhar em volta, encontra facilmente em vários órgãos de comunicação social uma "pardalada" muito semelhante à Eduarda Galvão, pessoas que não desistem, tão determinadas como ela. Mas nem todos os jornalistas são assim, convém não generalizar. Eduarda é jornalista, mas podia ter uma outra profissão qualquer, podia ser apresentadora de programas, ou qualquer coisa assim. Até podia ter a mais velha profissão do mundo, se calhar... [risos]. Aliás, não anda muito longe disso.

Há outra personagem, Vera Quitério, que desempenha igualmente um papel fundamental no romance, pronunciando a frase que dá título ao livro. Parece-me que é a única personagem que escapa à ironia da sua escrita, emergindo como uma espécie de representante da pureza da militância comunista. Porquê?

Ela é um pouco ingénua, com aquela maneira de ser, aquela beatice partidária... Prezo muito a vida daquelas pessoas que são como ela, e não tanto aquelas que são mediaticamente conhecidas. Como sabe, estive preso, enfim, estive em "palpos de aranha", para utilizar a expressão popular. Mas era um estudante de classe média, tinha o apoio dos familiares, pouco me podia acontecer, mais tarde tudo se recuperava. Contudo, havia pessoas que não tinham rede, que viviam do seu trabalho, que faziam sacrifícios: gente como Vera Quitério, que passou uma vida infernal, de terra em terra, sempre com medo, gente que jogava o seu pão.

Talvez nessa personagem o humor não esteja tão presente...
Quer dizer... a Vera Quitério é engraçada. É um bocado insuportável, com aquela mania de fazer festinhas às pessoas, com aquela maneira de ver o mundo, fechada. Isto porque a clandestinidade também acabou por fechar as pessoas, teve efeitos na própria percepção do mundo. Há qualquer coisa de estranho naquela mulher, não há? O facto de se sentir um pouco como a padroeira, a mãe protectora dos outros, aquelas falas mansas, aquela maneira de acreditar no futuro e nos outros. Tudo isso me parece um pouco patético também.

O título do livro - "Era Bom que Trocássemos Umas Ideias sobre o Assunto" - é um bordão do discurso que, como explica, sofreu várias evoluções até chegar a essa forma. Mas não será que ultrapassa o carácter de bordão de discurso, para adquirir o espírito de uma certa benevolência?

Sabe que eu copiei isso... Ouvi a frase na televisão, de um militante comunista, que de vez em quando dizia: era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto... Aproveitei a expressão e mais tarde escrevi-lhe a pedir desculpa pelo facto.

Mas queria exprimir com o título essa tal benevolência?
Queria dizer que o assunto não estava esgotado e que a discussão continuava... Lá está, aqueles tiques de linguagem, que se utilizam muito no Partido Comunista. O PCP tem a sua linguagem própria, tem a sua tradição linguística, o seu sociolecto. Quando estamos de fora, até ficamos um bocado chocados, porque as pessoas se tratam de maneira diferente, com um tipo de linguagem e de clichés que são próprios daquela casa.

Como se de um microcosmos de linguagem se tratasse...
Sim. Mas isso não é uma virtude do Partido Comunista, porque isso fecha-o, enquista-o. E é uma forma de o diferenciar dos outros partidos.

Mas acaba também por funcionar...
... como um factor de agregação e de reconhecimento, exactamente. E de identificação.

E como uma espécie de abrigo, um sítio onde ninguém faz mal a ninguém.

Pois. Isso funcionava assim na altura em que o livro foi escrito.

E agora?
Não, mas...
Como é que vê as polémicas recentes?
Estamos aqui a conversar sobre o livro, não gostava de falar sobre isso.

E sobre o que é ser comunista hoje? Talvez já lhe tenham feito esta pergunta pelo menos 400 vezes, assim como, como refere no livro, todos os comunistas do mundo já fizeram essa questão na vida...

Qual foi a resposta que deu o Vitorino [uma das personagens do livro, militante comunista]?

"É pá, tem calma, pá!"
Ah, é isso [risos]!
E não tem nada a acrescentar?
Ligar a fábula do livro à história do Partido parece-me um bocadinho redutor, porque me parece que o livro é mais que isso. De qualquer forma, há uma série de coisas que eu não quero estragar. E eu preferia que continuassem como eram dantes, não sei se continuam assim. Porque isso permite-me guardar os meus afectos intactos e não gostava de os ver destruídos. O Partido tem que ver com a minha vida e com o melhor de mim. Há fios de ternura que ainda estão intactos. Prezo muito a amizade e a solidariedade que se praticavam e que identificavam, de certa forma, os militantes do Partido. E isso não era falso, nem hipócrita.

E era por isso que a personagem Joel Strosse tinha tanta vontade de aderir ao Partido...

Sim, era uma forma de obter reconhecimento e uma forma de o ouvirem. As pessoas precisam que as ouçam. Não falo por mim: sou pouco comunicativo, sou rápido a ouvir, não sou de conversas. Mas as pessoas precisam de conversar, de contar, de saber que alguém as ouve. Não se sabe grande coisa sobre a vida do Joel, por que caminhos terá andado: mas sabe-se que era um infeliz, tudo lhe corria mal. Daí que tenha criado a ideia de um partido um bocado fantástico...

Uma utopia?
Sim, se quiser, um lugar que não existe. Para ele, era um pouco isso, como a ilha da Cocanha.

Achei interessante a forma como capta algumas expressões, tiques ou alguns modos de ser das personagens. Como é que consegue fazer isso? Regista de memória, escreve num papel?

Por exemplo, ia no autocarro e alguém disse: "Sim, porque ele é meu superior 'anárquico', ouviste?". Ou: "esperar que a polícia tirasse as impressões 'vegetais'". Estou naturalmente atento a estas coisas. Não escrevo nada. No momento oportuno, elas surgem do sítio onde estão guardadas, tal como estão, ou transformadas. Em tempos, conheci um rapaz, amante de ópera, que tinha um periquito que andava pela casa, à solta, e que debicava as pautas de música, deixava vestígios, enfim. E falava. No livro, há um periquito: ele é uma reminiscência do tal periquito que eu encontrei na minha juventude em casa do tal rapaz. Portanto, há acontecimentos que vou guardando e depois aproveito. São materiais para a composição. Tal como as personagens: elas também são compostas. É o chamado efeito de personagem.

Quando escreve, escreve para alguém em particular, para algum leitor-tipo?

Não estou preocupado com as audiências, não me interessa saber se o livro vai ter mil ou 200 mil leitores. Agora, a literatura é, por natureza, transitiva, no sentido em que estabelecemos sempre através do texto uma relação com o outro, com o receptor. Podia escrever numa língua inventada, aliás, isso já foi feito. Mas não escrevo assim, escrevo em língua portuguesa, para que as situações e as personagens que concebo sejam entendidas. E mais: que sejam completadas. Umberto Eco escreveu que "o texto é uma máquina preguiçosa", ou seja, alguém do outro lado tem de fazer alguma coisa, de reconstruir. Costuma dizer-se que os textos para teatro e para cinema são textos esburacados, porque é necessário que tudo aquilo que está à volta seja composto.

Mas no próprio texto literário, em que há muito mais liberdade da parte do autor, também há interstícios que têm de ser preenchidos. Tem que existir a possibilidade de o leitor conseguir fazer alguma coisa com o nosso texto, reescrevê-lo, reinventar personagens. Por exemplo, seguramente que a sua Eduarda Galvão não é a mesma que a minha, porque lhe deu um rosto, uma aparência, uma altura diferentes. Voltando atrás, escrevo para um leitor que me compreenda. É evidente que não encontrarei isso em pessoas que se interessam exclusivamente por revistas cor-de-rosa ou por futebol, porque não têm os materiais nem a experiência de vida suficientes para conseguir este efeito. Mas penso que o chamado leitor modelo, isto é, as pessoas que lêem livros, os destinatários desta colecção do PÚBLICO estão em condições de reconstruir o texto. O texto deste livro tem sempre fios, está cheio de citações, tem reproduções de outros textos, enfim, tem muito intertexto. Pode ser interessante para o leitor reconhecer esse jogo, a forma como se lida com a tradição literária.

Há, de facto, várias referências a outros autores e a outros textos. Tem algum escritor de eleição?

Isso varia um pouco com as horas do dia, com os momentos...
Neste momento, o que está a ler?
A última coisa que li foi teatro, uma tragédia de Vittorio Alfieri [dramaturgo italiano], "Filipe II".

E está a escrever alguma coisa?
Ando há longos anos com um romance, não sei se hei-de dizer ao colo se às costas. Ando a escrevê-lo, o que significa mudar imensos princípios, situações, encontrar imensos desenvolvimentos divergentes... as personagens vão mudando, os homens tornam-se mulheres, os jovens tornam-se velhos. Preciso de encontrar ligações entre as personagens, tenho consciência de que algumas delas ainda não existem, as coisas precisam de ser apuradas. Este livro é subsidiado e eu cumpri: ao fim de um ano, entreguei 157 páginas, que era o que tinha prometido. Simplesmente, isso não me obrigava a publicá-lo, porque não é ainda o livro que eu quero. Entretanto, vão-se metendo outras coisas, filmes, peças de teatro, derivações, que vão dando oportunidade a que, por debaixo disso, o romance se vá construindo.

De entre os livros que escreveu, tem algum preferido?
"O Livro Grande de Tebas Navio e Mariana" (1982) é um deles: todo o meu programa de escrita está lá. Tudo o que escrevi depois parte desse livro, seja teatro, cinema, ficção ou conto. Como se fosse uma irradiação, que, ao mesmo tempo que alimenta, limita também. Há ainda outro livro do qual gosto muito, que é "Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde", que se passa no tempo do império romano, na Lusitânia romana. De certo modo, eu até posso quase dizer que escrevi "Era Bom..." para fazer um contraponto em relação ao outro, porque já estava tão farto de antiguidade, de acumular coisas e de pensar aquele período de Marco Aurélio, que decidi passar para outro registo. E então apareceu "Era Bom...".

De certa forma, passou do passado para o presente...
Sim, sim. Passei para o presente e para outro registo de escrita, bem diferente do tom solene, mais ou menos copiado da música dos textos latinos. Este tem uma linguagem mais dos nossos dias, embora com reminiscências do romantismo, sobretudo no papel do narrador, que continuamente se dirige ao leitor.

O que pensa de Álvaro Cunhal como autor?
Tive a oportunidade de o entrevistar há uns anos. Sou um curioso, às vezes não resisto às propostas que me são feitas. E a revista "Visão" propôs-me fazer-lhe uma entrevista a propósito do livro "Cinco Dias, Cinco Noites", que tinha sido reeditado naquela altura, quando foi estreado o filme homónimo de Fonseca e Costa. A entrevista correu muito bem. Álvaro Cunhal tem um enorme controlo do discurso, que eu aliás já conhecia.

E como escritor?
Gostei muito desse livro. Uma coisa que me impressionou foi a grande singeleza da sua linguagem e a sucessão de elementos plásticos - a luz, a sombra, a cor e o cinzento. Pareceu-me que ele dominava isso com muita mestria. Acho que é um bom conto do neo-realismo português.

Sabia que Álvaro Cunhal tinha traduzido o "Rei Lear", de Shakespeare, como se veio a descobrir recentemente?

Não, soube há dias. Tenho uma tradução portuguesa, mas é muito antiga, dos anos 30. Lerei com todo o gosto a tradução dele e confrontá-la-ei com a tradução que tenho. Agora, se bem me lembro, na entrevista que lhe fiz, curiosamente, ele falou muito de Shakespeare, com grande entusiasmo. Ele conhecia os textos profundamente, quase como se os tivesse lido na véspera. Mas não me disse que tinha traduzido o "Rei Lear".