A Metamorfose
Franz Kafka



 

Tiragem de 100 mil exemplares
Franz Kafka
A história do homem que acordou insecto

Por Teresa Firmino

A condição humana oprimida e alienada pela sociedade moderna é o tema central de “A Metamorfose”, escrito em 1912. Franz Kafka tinha 29 anos e não gostou do resultado. Porém, 90 anos depois de ter sido escrito — e publicada pela primeira vez em 1915 — é uma das mais conhecidas do escritor checo.

O livro “A Metamorfose” não podia começar de maneira mais crua e estranha: “Certa manhã, ao acordar de sonhos inquietos, Gregor Samsa viu-se transformado num gigantesco insecto.” Franz Kafka introduz assim a história de Gregor Samsa, um incansável caixeiro-viajante que sustenta os pais e a irmã, que se entregam descaradamente à ociosidade.

Parasitado pela família até àquela manhã em que ao acordar, já atrasado para o trabalho, viu uma carapaça dura, uma barriga castanha abaulada e muitas pernas magrinhas, Gregor Samsa é quem parasitará a família a partir daí. Mas esta obra conta mais do que a história de um homem que acordou insecto: fala de como o ser humano pode viver alienado pelo trabalho, o dever familiar ou pela autoridade do pai e alerta para os comportamentos humanos. Ao mesmo tempo, reflecte alguns aspectos da vida do autor.

Franz Kafka escreveu “A Metamorfose” em apenas três semanas, em finais 1912, quando tinha 29 anos. Não gostou do resultado, que considerou imperfeito e com um final ilegível. O certo é que 90 anos depois de ter sido escrita, esta obra — publicada pela primeira vez em 1915 — é uma das mais conhecidas do escritor checo.

Kafka nasceu a 3 de Julho de 1883 em Praga, então pertencente ao império austrohúngaro, e morreu, de tuberculose, a 3 de Junho de 1924, a um mês de fazer 41 anos, perto de Viena.

Completou o curso de Direito em 1906, na Universidade de Praga, e empregou-se numa companhia estatal de seguros como inspector de acidentes de trabalho, onde se manteve até 1922, quando a tuberculose, doença terrível na época, o forçou a reformar-se. Apesar de lhe permitir uma fonte de rendimento estável, sempre se sentiu insatisfeito no emprego, porque o impedia de se dedicar totalmente à escrita. Como era frequente escrever até de madrugada, ia muitas vezes trabalhar exausto.

Sempre foi muito marcado figura dominadora do pai, um próspero comerciante judeu a quem só interessava o sucesso material e a ascensão social, não vendo com bons olhos a actividade literária do filho. Por isso, nas obras de Kafka, que não conseguia impor-se à autoridade paterna e permaneceu dependente do meio familiar, a figura do pai aparece muitas vezes associada à opressão, como aliás transparece em “A Metamorfose”.

O autor não gostava de leituras biográficas
Um acontecimento tão insólito como seja a transformação de um homem em insecto é relatado de forma tão realista, apesar de impossível, que o leitor aceita-o como factual e é forçado a procurar sentidos mais profundos. O que causou então a metamorfose do caixeiro- viajante, que o levou a perder a figura humana e a ficar com a voz roufenha de animal, a gostar de comida apodrecida, a rastejar pelas paredes e pelo tecto e a ver cada vez menos? Desengane-se o leitor se está à espera de encontrar uma resposta explícita, o que está lá é uma metáfora de muitas coisas.

Uma metáfora de como o ser humano pode viver alienado da realidade, em tempos de pessimismo e desorientação, pois dois anos depois da escrita deste conto rebentou a I Guerra Mundial. Tão alienado pode estar-se que Gregor Samsa não se apercebeu logo de todas as transformações do seu corpo, ainda pensou tratar-se de uma tolice e procurou dormir mais um pouco.

Ou uma metáfora de como a economia afecta as relações humanas e pode ser-se oprimido por um patrão desconfiado, que mandou o gerente a casa do caixeiro- viajante para averiguar por que não foi trabalhar, apesar de em cinco anos de serviço nunca ter estado doente uma única vez. Gregor Samsa é um escravo da sua família, porque é o único a ganhar dinheiro, todos vivem à sua custa. Só tem valor enquanto fonte de rendimento familiar e meio de pagamento das dívidas do pai ao seu chefe. Ainda por cima, culpabiliza-se por não poder trabalhar.

“Se não fosse pelos meus pais, já há muito que teria pedido a demissão; ia ter com o meu chefe e dizia-lhe tudo o que me vai na alma. Havia de cair da secretária! Também não deixa de ser estranha essa sua mania de se sentar na secretária e falar lá do alto com o empregado que, ainda por cima, tem de chegar muito perto dele, por causa da surdez. Bom, ainda não perdi completamente a esperança; logo que tiver o dinheiro necessário para lhe pagar a dívida dos meus pais — serão mais uns cinco ou seis anos — , é o que farei. Será então o grande corte.”

Ou a metáfora da hipocrisia da família: quando a metamorfose impediu o caixeiro-viajante de ir trabalhar, e passou a ser o parasita de quem o parasitava, trataram-no com desprezo e abandonaram-no. A princípio, a irmã, a única a preocupar-se com ele, ainda lhe levava a comida de que ele gostava e limpava o quarto.

Mas quando todos começaram a trabalhar, para se sustentarem, isso mudou. O quarto acabou por ficar cheio de novelos de pó e de lixo, e não tardou muito a ficarem agarrados às costas e aos flancos de Gregor fios de cabelos e restos de comida. “Sem se deter a pensar no que poderia agradar mais a Gregor, a irmã agora, antes de ir para a loja, de manhã e à hora de almoço, empurrava à pressa, com a ponta do pé, qualquer coisa comestível para dentro do quarto, e à noite, ao regressar, varria-a com duas vassouradas, indiferente ao facto de Gregor mal ter tocado na comida ou ter deixado ficar quase tudo — o que era o mais frequente.”

Até a irmã de Gregor, Grete, o único membro da família de quem se sentia mais próximo — à semelhança do que acontecia com Kafka em relação a uma das suas três irmãs, Ottla — acabou por traí-lo. Foi Grete quem disse: “Não quero pronunciar o nome do meu irmão em frente deste monstro, e por isso digo apenas: temos de tentar livrar-nos dele. Fizemos tudo o que é humanamente possível, cuidámos dele, aturámo- lo. Acho que ninguém nos pode acusar seja do que for.” Disse ainda aos pais: “Ele ainda dá cabo de vocês, está-se mesmo a ver. Quando se tem de trabalhar tanto como nós, não se pode, ainda por cima, aturar este constante tormento em casa. Eu também já não aguento mais.”

Kafka não gostava nada de leituras biográficas de “A Metamorfose”. Mas a relação conflituosa com o pai acaba por transparecer neste conto, em particular na passagem em que o senhor Samsa bombardeia Gregor com maças, até uma se lhe cravar em cheio no dorso. Feriu-o gravemente, e ficou lá a apodrecer e a infectálo. “(...) Desde o primeiro dia da sua nova vida, sabia bem que do pai só havia a esperar a máxima severidade”, escreveu.

O facto é que as tensões entre pai e filho estão presentes em três contos escritos por Kafka entre 1911 e 1912: “A Sentença” e “O Fogueiro”, além de “A Metamorfose”. Na altura em que escreveu “A Metamorfose”, nem a mãe nem a irmã preferida de Kafka contrabalançavam a intolerância e ira paternas. A família insistia para que passasse mais tempo no emprego; Ottla não o apoiou nessa disputa. Sentindo-se traído por ela, pouco tempo depois desse episódio, Kafka estava a escrever a traição da irmã de Gregor.

A metamorfose em insecto foi uma forma de libertação do trabalho, mas Gregor Samsa não consegue ser livre ou fazer o tal grande corte: a família manteve-o aferrolhado no quarto, isolado do mundo. Porém, permaneceu humano até quase à morte, que foi a única forma de libertação: nesse limiar entre o humano e o insecto, permaneceu lúcido e até apreciava música, patente quando a irmã tocou violino para uns hóspedes. “Seria ele um animal, se a música o prendia assim tanto?”, questionou- se.