Vou Contar-te Uma História,
Paula
Por Marisa Torres da Silva
Quarta-feira, 7 de Agosto de 2002
"Paula", de Isabel Allende, é o testemunho
contado na primeira pessoa sobre a morte de uma filha. Como
se de uma viagem ao sofrimento humano se tratasse, o livro
percorre também a vida da escritora, entrecortada por
alegrias e tristezas, acontecimentos que fizeram história,
personagens diversas, amores e desilusões
Isabel Allende garante que esta obra não
é sobre a morte. "O meu livro 'Paula' é
uma memória trágica da história da morte
de uma jovem rapariga, mas sobretudo uma celebração
da vida. (...) A sua longa agonia deu-me a oportunidade única
de rever o meu passado." Com efeito, embora "Paula"
tenha como ponto de partida e fio condutor a doença
da filha da escritora, o livro vai-se transformando num autêntico
documento autobiográfico, à medida que Isabel
Allende faz desfilar as figuras e os acontecimentos que intervieram
na sua vida. Não se trata de uma mera obra auto-complacente,
portanto.
Como afirma a escritora, o romance serviu de
veículo para prolongar a presença da filha junto
da mãe, para manter a vida que já a tinha abandonado
desde o momento em que deu entrada no hospital, mergulhando
num coma profundo. Para Isabel Allende, a escrita funcionou
aqui como um elemento catártico, a salvação
para a mais profunda das agonias, fixando no papel as memórias
e as recordações, para que o tempo não
as apagasse irreversivelmente.
Ao mesmo tempo que a autora exprime os dolorosos
estados de espírito em que se encontra, plenos de dúvidas
e de receios, essa longa viagem ao interior de si mesma, quando
confrontada com uma situação limite, dá
lugar a uma reconstrução da história
da sua família. Em "Paula", Isabel Allende
como que pinta um auto-retrato, apoiado em informações
da mais variada índole, acerca dos seus progenitores,
infância, desgostos, crenças e métodos
de trabalho. Talvez porque, como diz, "toda a ficção
é, em última análise, autobiográfica.
Escrevo sobre amor e violência, sobre morte e salvação,
sobre mulheres fortes e pais ausentes, sobre sobrevivência".
Todas as suas memórias que inevitavelmente
florescem com o decorrer da escrita são retocadas com
a linguagem que habituou e prendeu leitores em todo o mundo,
reminiscente do chamado realismo mágico sul-americano.
Há, aliás, quem a considere uma parente pobre
de Gabriel García Márquez. Gostos à parte,
certo é que o seu estilo de escrita e as histórias
que os seus livros contam a tornaram famosa.
Para onde vais, Paula?
Isabel Allende já sabia do estado da
sua filha há muito tempo - Paula era portadora de porfíria,
doença hereditária que recebeu através
do pai, Miguel Frías, o primeiro marido da escritora.
Paula ficou em coma durante um ano, acabando por falecer na
casa da mãe e do padrasto na Califórnia, a 6
de Dezembro de 1992, com apenas 29 anos de idade.
Se difícil é escrever sobre a
morte, ainda mais doloroso é escrever sobre a morte
de um filho. Mas Allende viu nesse processo uma hipótese
de salvação, tentando não cair em sentimentalismos,
que tanto horror provocavam em Paula. Daí que a longa
introspecção que realizou a impedisse de atingir
um estado de irremediável loucura. Começou por
contar uma história para que a filha não se
sentisse perdida no despertar, mas as páginas que redigiu
transformaram-se numa lenta meditação, sem destinatário
específico, até aos recantos mais obscuros da
consciência e da memória.
O resultado é uma obra poderosa
e intensa, que conseguiu a façanha de fascinar os fiéis
à obra literária da escritora chilena, mas também
os mais cépticos em relação ao seu estilo
habitual. A forma quase epistolar do romance e a sua intimidade
sofrida distancia-se de outros que celebrizaram Allende, como
"A Casa dos Espíritos", "De Amor e de
Sombra" ou "Plano Infinito". O livro que a
Colecção Mil Folhas disponibiliza agora aos
seus leitores é seguramente o mais notável romance
da carreira de Isabel Allende.
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