O Outono do Patriarca
Gabriel García Márquez



 

Quarta-feira, 12 de Junho de 2002
O Vício Solitário do Poder Contado por Garcia Márquez
Por Clara Viana

Um ditador eterno habita as páginas de "O Outono do Patriarca", o livro que García Márquez assumiu como "uma transgressão total da gramática". Hoje nas bancas com o PÚBLICO numa tiragem de 95 mil exemplares

A este general - que tudo tinha feito a todos e quase não poupara ninguém - atormentava-lhe aquele acto tardio de ter vendido o mar do seu país aos gringos. Não por o ter decidido, mas pelo que os outros tinham feito com esse gesto mais de déspota absoluto - "(...) nunca pude imaginar que fossem capazes de fazer o que fizeram que foi levar com gigantescas dragas de sucção as eclusas numeradas do meu velho mar de xadrez, (...) levaram tudo quanto tinha sido a razão das minhas guerras e o motivo do seu poder e deixaram apenas a planura deserta de áspero pó lunar que ele via ao passar pelas janelas com o coração oprimido (....)".

É também assim "O Outono do Patriarca", a obra vendida hoje com o PÚBLICO (jornal+livro=5 euros), assumida pelo seu autor, o escritor colombiano Gabriel García Márquez, como "uma transgressão total da gramática". Segundo ele necessária para dar à vida o ditador arquetipal de "O Outono do Patriarca", súmula dos muitos que têm povoado o seu continente de origem e de outros de terras mais longínquas - um general sem nome e sem idade precisa, que continua a governar quando de si já só existe um cadáver putrefacto. Um ditador imaginário das Caraíbas que tem como modelo central o venezuelano Juan Vicente Gómez que chegou ao poder em 1908, como apoio dos EUA, e apenas o abandonou quando morreu, em 1935.

García Márquez confidenciou, em tempos, aos leitores da revista colombiana "Cambio" que foi surpreendido por dois jovens músicos que afirmavam ter encontrado neste seu livro a mesma estrutura do Concerto para Piano nº 3 de Béla Bártók. O escritor, que é viciado em música, foi apanhado pela coincidência: andara, de facto, fascinado pelos concertos do húngaro Bártok, sobretudo pelo terceiro que continua a ser o seu preferido, nos longos anos (1968-1975) da criação daquele Outono.

Pura magia. Ou, talvez, não. Esclarece o Prémio Nobel da Literatura: "Acredito que um relato literário é um instrumento hipnótico, como o é a música, e que qualquer tropeço no ritmo pode desfazer o feitiço." Mas este livro, onde a pontuação emerge como "um simples alívio respiratório" e os tempos e pessoas do verbo mudam na mesma frase, consoante passa para outras bocas o monólogo de que é feito, resultou, também, segundo o autor, de um esforço de "condensação e síntese": "O mundo do ditador eterno, escrito no estilo dos livros anteriores, teria dado não menos de duas mil páginas."

O mundo do filho bastardo de uma criadora de pássaros, apanhado pela morte numa idade incerta entre os 107 e os 235 anos, atacado pelo "vício solitário do poder", que descobriu nos seus anos incontáveis que "a mentira é mais cómoda do que a dúvida, mais útil do que o amor, mais perdurável do que a verdade".

Foi um choque para a crítica e para os leitores que ansiavam por mais "Cem Anos de Solidão", que queriam "mais do mesmo", como conta García Márquez que, pelo contrário, apenas ansiava não se repetir. Quis também o azar que, devido a um defeito de impressão, a primeira edição espanhola do livro se desmembrasse nas mãos. "Li o Outono, folha por folha", comunicou-lhe, a propósito, um amigo. Com o tempo o livro foi encontrando cada vez mais leitores. Diz o escritor que as novas gerações o poderão ler como se tratasse "do crepúsculo de um Tarzan de 200 anos".