"Ménage à trois"
em "O Jardim do Éden", de Hemingway
Para alguns, um notável exercício,
para outros "mau Hemingway". Esta obra póstuma
de Ernest Hemingway, apesar da falta de consenso junto do
público e da controvérsia em torno do seu
trabalho de edição, permanece como um belo
livro da literatura actual.
Viviam nessa altura em La Grau-du-Roi...
É assim que começa "O Jardim do Éden",
de Ernest Hemingway, romance póstumo publicado em
1986, um quarto de século depois do suicídio
do escritor. La Grau-du-Roi foi onde Hemingway passou a
lua-de-mel com a segunda mulher, Pauline.
O pormenor é importante quando se
sabe que o material por ele usado para a escrita foi sempre
muito mais a sua vida do que a imaginação.
Ernest e a primeira mulher, Hadley, passaram o Verão
de 1926 na Riviera francesa na companhia de uma amiga, precisamente
Pauline. Mais tarde, Hemingway escreveu sobre esse Verão:
"O arranjo tem vantagens até sabermos como funciona."
Mais: "Quando acaba o seu trabalho, o marido tem duas
mulheres atraentes por perto. Uma é nova e estranha
e se ele tiver azar acaba por amar as duas... Primeiro é
estimulante e divertido... Todas as coisas verdadeiramente
perversas partem da inocência." Hemingway falava
da sua vida. Ou seria de "O Jardim do Éden"?
Os que "viviam nessa altura (anos 20)
em La Grau-du-Roi" eram David Bourne, um escritor com
um primeiro romance de êxito, e a mulher, Catherine.
Estavam em lua-de-mel. Quem se junta a eles é Marita,
nova e estranha. O jogo começa.
Antes de Marita entrar em cena, Bourne bebe,
nada, come, bronzeia-se - e trabalha. Catherine bebe, nada,
come, bronzeia-se, cuida do cabelo, do corpo - e tem ciúmes
da escrita do marido. É ela que está no comando
das operações, ele está num abandono
doce, absorvido por ela. É isto o Éden, o
Paraíso, a inocência? Um dia ela aparece com
o cabelo cortado como um rapazinho. E, na cama, quando fazem
amor, ela é Peter, e ele é Catherine. "Tu
és a minha bela e adorável Catherine...",
diz-lhe ela. Catherine/Peter está por cima, a controlar.
Quem é o homem? Quem é a mulher? "Agora
não se sabe quem é quem, pois não?"
pergunta ela.
Marita entra na vida deles via Catherine.
Apaixona-se pelos dois. Torna-se amante dela, amante dele,
são elas que o dividem num regime de "time-sharing".
É Catherine, a que lançara o jogo, aquela
que fraqueja, que acaba por ceder. Marita fica com David,
Catherine parte. Na narrativa de "O Jardim do Éden"
existe um intruso na evolução deste "ménage
à trois": um conto que David está a escrever,
sobre uma caçada em África com o pai, a perseguição
e morte de um elefante. Para alguns é um notável
exercício, que obriga o leitor a deslocar-se entre
a África Oriental e o Sul de França, e David
a oscilar entre os sentimentos para com o pai que o acompanha
no safari e os sentimentos para com as mulheres que o esperam
à porta do quarto de hotel onde escreve. Para outros,
este "conto africano" é "mau Hemingway",
um patético esforço para descrever os rituais
de iniciação de um adolescente.
A história é apresentada do
ponto de vista de David Bourne (na terceira pessoa que era
a primeira, como Hemingway preferia), mas Catherine é
o pilar do livro, provavelmente a mais impressionante personagem
feminina de qualquer obra do escritor. Já David e
sobretudo Marita parecem muitas vezes desprovidos de vida.
Um terço do Éden
Isto pode então levar-nos às condições
em que foi escrito "O Jardim do Éden".
Hemingway trabalhou nele arduamente, no pós-guerra,
durante ano e meio, entre 1946 e 1947. Interrompeu-o, pô-lo
de lado para escrever, por exemplo, "O Velho e o Mar",
grande responsável pelo Pulitzer de 1953 e pelo Nobel
de 1954. Foi revendo, acrescentando, cortando, "O Jardim..."
era para ele, visivelmente, uma obra importante, mas inacabada.
E inacabada continuava quando se suicidou, num domingo,
2 de Julho de 1961, com uma caçadeira. Quinze anos
depois de começado, "O Jardim do Éden"
não estava pronto, tinha quase 200 mil palavras,
1.500 páginas dactilografadas. Foi nos anos 80 que
Tom Jenks se atirou ao trabalho de editar o livro para publicação.
Quando acabou, restavam 70 mil palavras, aquelas a que hoje
temos acesso.
Não podia deixar de haver controvérsia,
por muitos elogios que o trabalho de edição,
e o resultado final, tenham merecido e mereçam, neste
como noutros livros póstumos de Hemingway. Jenks
assegura que "cortou e rearranjou, mas sem acrescentar,
sem reescrever". O escritor norte-americano E. L. Doctorow,
quando em 1999 revisitou "O Jardim do Éden"
para o suplemento literário do "New York Times"
(a propósito do centenário do nascimento,
a 21 de Julho de 1899), observou: "A verdade sobre
editar o trabalho de um escritor morto é que só
é possível cortar para afirmar as forças
dele, para reiterar as estratégias de estilo pelas
quais ele é conhecido; quando, se fosse o próprio,
trataria de escrever para as transcender. Este não
pode ser o livro que Hemingway ansiava concretizar nos momentos
mais ambiciosos da sua batalha para o terminar, uma luta
que o ocupou intermitentemente durante quase 15 anos".
É, ainda assim, um belo livro.
Ou, como E.L. Doctorow prefere, uma bela tentativa: "Gostaria
de pensar que quando começou 'O Jardim do Éden',
o seu primeiro romance imediatamente após a guerra,
ele (...) queria reiventar-se. Que tenha falhado não
é o mais importante - mas o facto de ter tentado,
e isso é a verdadeira coragem de um escritor, requer
mais bravura do que enfrentar uma carga de elefantes com
uma Mannlicher .303.".