Eça de Queirós
Isabel Allende



 

“O Crime do Padre Amaro”
Um romance dum deus

Por Carlos Câmara Leme

Obra-prima da literatura portuguesa, extraordinária sinfonia de sentidos sobre o amor e o desejo — mas também a sua impossibilidade —,“O Crime do Padre Amaro” dá-nos a conhecer uma sociedade hipócrita. Estávamos em finais do século XIX. Hoje ainda dá que pensar. E lê-lo é um imenso prazer.

Numa longínqua manhã de um Julho quente, corria o ano 1870, José Maria Eça de Queirós saía de uma diligência e punha pela primeira vez os pés em Leiria, para tomar posse enquanto administrador do concelho. Nas malas literárias, uma viagem ao Oriente, a experiência decisiva para a sua carreira posterior, a de jornalista no “Districto de Évora”, e a partilha, com Ramalho Ortigão, de “O Mistério da Estrada de Sintra”.

O burgo contava, então, com cerca de quatro mil habitantes. O jovem bacharel por Coimbra acabara de fazer 25 anos. Aborrecido, pinta as primeiras impressões da cidade e das suas gentes: “Imaginem-me aqui nesta terra melancólica, só, sem um livro, sem um dito, sem uma conversa, sem um paradoxo, sem uma teoria, sem um satanismo — estiolado, magro, cercado de regedores e devorado de candidatos.” Cruel, rosna: “Respondo a esta gente com monossílabos ferozes.”

Muito embora Oliveira Martins tenha confessado (com algum exagero), já depois da morte do romancista em 1900, que “O Crime do Padre Amaro” teria sido o “único romance que Eça trouxera no ventre, e tudo o mais eram trabalhos de humorismo”, as circunstâncias que teriam levado a escrever “O Crime...” ainda hoje se encontram envolvidas num mistério. Em boa verdade, em vários.

Assassinar o crime
O “Jornal de Leiria”, na sua edição de 19 de Outubro de 2000, com base numa confidência do cónego Galamba de Oliveira, entretanto já falecido, escrevia que o livro terá nascido de uma irritação de Eça, confrontado que foi com comentários menos felizes do pároco da Sé a um poema seu declamado num serão na pensão de D. Isabel Jordão, situado na R. da Tipografia, 13, onde se instalara. Como um azar nunca vem só, numa segunda estada em Leiria, Eça será apanhado com a boca na botija quando, num Carnaval, mascarado de cupido com asas de cambraia, é corrido a pontapé pelos criados do barão de Salgueiro depois de ter sido encontrado em flagrante delito com a mulher do barão. Nem mais: uma cena real que, curiosamente, Eça reconstituirá em “Os Maias”, no saboroso episódio entre João da Ega e a Gouvarinho. 1874. Eça de Queirós chega a Newcastle a 31 de Dezembro. Aos mistérios de Leiria junta-se mais um: em que data o romancista começa a conceber “O Crime do Padre Amaro”. Vive meses de ansiedade. Numa missiva a Batalha Reis, escreve: “O Padre Amaro não pode ir matar o filho para a rua, à luz pública.” Mais: “Se ele não puder cometer a sua patifaria em letra de imprensa, então quero que ele esteja aqui ao meu lado, na gaveta, matando sossegadamente — seu filho — e portanto meu neto.” Conscientemente, o romancista sabia que tinha entre mãos um bico de obra — de resto, “O Crime...” inscrevia-se num projecto mais vasto do romancista, o de gizar uma viagem “às cenas da vida portuguesa” ou “da vida real”.

Eça vai directo ao assunto, num “zoom” cinematográfico extraordinário. O pároco José Miguéis, alcunhado com ironia pelo escritor como o “comilão dos comilões”, morria de apoplexia num Domingo de Páscoa. Dois meses depois, Leiria sabia o nome do seu substituto: Amaro Vieira, atribuindo-se a sua escolha a “influências políticas”. À segunda página do romance estamos no centro de uma das denúncias que Eça vai plasmar ao longo do livro, a corrupção política e o conluio entre a igreja e os poderes estabelecidos: “‘A Voz do Distrito’, que estava na oposição, falou com amargura, citando o Gólgota, no ‘favoritismo da corte’ e na ‘reacção clerical’.”

Amaro, descreve o narrador, era um “belo rapagão”. De todo o clero, só o cónego Dias sabia da sua existência, pois tinha sido seu professor no seminário. “Espertote”, clarificou o cónego. Eça não perde tempo. Revela que “o facto mais saliente da vida” do cónego “era a sua antiga amizade com a sra. Augusta Caminha, a quem chamavam a S. Joaneira, por ser natural de S. João da Foz. A S. Joaneira morava na Rua da Misericórdia e recebia hóspedes. Tinha uma filha, a Ameliazinha, rapariga de vinte e três anos, bonita, forte, muito desejada.”

Só falta, para completar o cenário, um pequeno detalhe — para onde iria viver Amaro, que só pedia uma casa barata, situada q.b., mobilada e, obviamente, respeitável. A “soberba ideia” do cónego Dias é a de instalar o putativo pároco na casa da S. Joaneira. O primeiro lance do crime está dado. Em alguns capítulos, Eça traça num “flash back” de forte carga erótica o percurso de Amaro, educado no seio — em sentido figurado e literal — de mulheres. Volta, de novo, a Leiria e o jogo do desejo Amaro-Amélia começa a ganhar formas. Ela não dormia, ele também não: fumava excitado e olhava a lua. Os olhares cruzam-se, os silêncios dizem tudo (ou quase). Amaro, quando descobre os amores do seu mestre com S. Joaneira, desabafa: “Todos são do mesmo barro.” Ela, pela voz do narrador, passava noites “sacudidas de sonhos lúbricos” e, quando se jogava o “quino”, os joelhos dos dois “ficavam sempre juntos”. “E ambos vermelhos, permaneciam vagamente entorpecidos no mesmo desejo intenso.”

Quando o crime (?) se dá, o ambiente está dado. Não falta nada: os críticos liberais e anticlericais, a denúncia pela verve de João Eduardo no Comunicado que põe o clero em alvoroço e toda a “santa” e hipócrita Leiria. De repente, como no início do romance, Amélia fica grávida. Os sonhos transformam-se em pesadelos. Penosos. Amaro e Amélia ficam prisioneiros do amor e do pecado. O pároco começa, então, a engendrar a fuga. A ela não lhe resta senão esperar. Amaro chega a rezar para que a mãe e o filho morram. O que acontece. O padre sai por cima. Em Lisboa, já no final do livro, Eça volta a colocar frente a frente Amaro e o cónego Dias. O Chiado chorava lágrimas de crocodilo pela insurreição que se vivia em Paris. Que importa! Amaro, quando o mestre lhe chama a atenção de duas mulheres que passeiam no Loreto, remata: “Já lá vai o tempo, padre-mestre, disse o pároco, rindo, já as não confesso senão casadas.”

Com ambígua e sarcaz ironia — que percorre toda a sua obra a que voltamos sempre —, Eça vê-os e desfere a sua última estocada: o conde de Ribamar, o homem de Estado, e os dois religiosos junto à estátua de Camões, “gozavam de cabeça alta esta certeza gloriosa da grandeza do seu país — ali ao pé daquele pedestal, sob o frio olhar do velho poeta, erecto e nobre, com os seus largos ombros de cavaleiro forte, a epopeia sobre o coração, a espada firme, cercado de cronistas e dos poetas heróicos da antiga pátria — pátria para sempre passada, memória quase perdida”. Eça, feroz, dá outro golpe de mestre: sendo a fé a base da ordem, como exclama o conde, não admira que Portugal seja a inveja da Europa: “Vejam toda esta paz, esta prosperidade, este contentamento...”

Miguel Torga, com razão e intuição, no primeiro volume do seu “Diário”, em 1939, escreveu: “À noite (três da manhã) um passeio pelos becos da cidade. A Sé, a botica do Carlos, a rua da Misericórdia, a casa da Sanjoaneira. Grande Eça! Arrancar desta terra um tal romance, parece obra dum deus!” Ainda hoje, as palavras de Torga mantêm-se vivas. Como as de Eça. O romance aí está. Para celebrar a Colecção Mil Folhas. E, sobretudo, a literatura. Das maiores que se escreveram em Portugal.