Cesare Pavese
Que sangue
corre nas suas veias?
Por Marisa Torres da Silva
Em "A Lua e as Fogueiras", o 24º
livro da Colecção Mil Folhas, Cesare Pavese
mistura passado e presente e confronta o homem com o seu mundo
interior e exterior, para nos falar da experiência solitária
de viver. E também do amor na sua forma impossível.
Que sangue corre nas veias de alguém
que desconhece o homem e a mulher que o geraram, que desconhece
a terra onde nasceu, que desconhece o seu nome? Que resta
a um homem, aos 40 anos, quando olha para trás e o
cheiro a tília já não basta para se sentir
ele próprio? Talvez o silêncio e a solidão
que o acompanha, a ele e a Nuto, o amigo que reencontra ao
fim de 20 anos, com quem vai conversando numa varanda de onde
avistam uma infinita praça, caminhando por entre vales
onde crescem vinhas, povoados por gente que nunca partiu mas
que um dia se observará a si própria e para
quem também "tudo terá terminado".
Em "A Lua e as Fogueiras", o escritor
italiano Cesare Pavese fala-nos de como viver é sempre
um acto solitário, apesar da pulsão para o outro,
apesar da necessidade de amar. O mundo é o que cada
um conhece: acaba e começa em nós. É
na terra muda, imutável na sua cíclica mutabilidade,
nos seus cheiros e sabores, no seu calor que o narrador se
reencontra.
Sentimos reverberar os versos do seu poema
"Os Mares do Sul": "Calar é a nossa
força/ um antepassado nosso deve ter-se sentido muito
só - um grande homem entre imbecis ou um louco coitado
- para ensinar aos seus tanto silêncio."
Aqui o amor é um veneno que destrói:
nenhuma das personagens ama e é amada. Como escreveu
Pavese no seu diário, publicado postumamente sob o
título "O Mistério de Viver", "uma
pessoa não se mata por amor a uma mulher, mas porque
o amor - qualquer amor - nos revela a nossa nudez, a nossa
miséria, a nossa vulnerabilidade, o nosso vazio."
O que regressa inesperadamente
É esse vazio que paira no regresso do
protagonista à Langhe, aos locais onde passou a infância
e a adolescência, ao confronto com uma multiplicidade
de tempos, do que poderia ter sido a sua vida, flutuando no
desconsolo, na sua condição de bastardo que
não tem raízes. Com um olhar desesperançado
que mistura passado e presente, que multiplica esses tempos,
mas que nunca se dirige ao futuro (o livro foi escrito quatro
meses antes de Pavese se suicidar, aos 42 anos), a personagem
vai (re)descobrindo e percorrendo a sua identidade, revirando-a
do avesso para ir sendo revelada no confronto com os outros,
com a terra, com o poder inexplicável das histórias,
da Lua e das fogueiras. É assim que, por vezes, aquilo
que julgou ter esquecido regressa de forma inesperada, tão
ou mais arrebatadoramente do que no momento em que foi vivido.
Pelo livro, ecoam as palavras de outra personagem, Cavaliere:
"Cometem-se muitos erros nesta vida. Os verdadeiros achaques
da idade são os remorsos."
Com uma angustiante melancolia, Pavese constrói
uma narrativa onde tudo aparece como mutável e imutável,
como variações e contradições
das paisagens exteriores e interiores do narrador.
Há as oposições entre
o campo, uma espécie de paraíso perdido, e a
cidade, entre a aldeia e as cidades da Califórnia,
entre o permanecer e o partir, e também as ligações
através de projecções das fantasias da
personagem. O regresso, aquilo que se (re)vive no momento
do regresso, também só existe porque um dia
o homem partiu, pulou de Canelli, onde tudo começava
e acabava, para Génova, depois para a América,
o último lugar do mundo do qual só se pode regressar,
o país onde todos são bastardos. "Ter uma
terra quer dizer não estar só, saber que na
gente, nas plantas, na terra há qualquer coisa de nosso
que mesmo que estejemos ausentes espera por nós."
Ora, o narrador sabe que não é
sua aquela terra onde o calor baixa "do fundo dos vinhedos";
terra fértil mas que tudo devora e transforma; terra,
onde estão enterrados os corpos de quem ele amou, os
corpos dos que lutaram na guerra. Mas também sabe que
a terra tem um aroma próprio e é nos cheiros
e sabores que se (re)encontra: não a tem no sangue;
tem-na nos ossos, "como o vinho e a polenta e não
é preciso falar dela".
Na Gaminella, situada numa "encosta longa
e ininterrupta de vinhas e ribeiras", já não
há avelaneiras: "E isso queria dizer que tudo
acabara." A antiga casa onde passou a infância
e partilhava o colchão com duas raparigas está
devastada pela miséria, pela violência, pelo
horror, pelos rostos sombrios, por mulheres inumanas. Mesmo
assim, há instantes em que o protagonista gostaria
de não ter construído a sua vida, em que inveja
Cinto, o rapaz aleijado que ali mora.
Amar em segredo
Com Nuto, partilha memórias e ideias:
ele, que o desafiava a pular os telhados, que antes dividia
com ele os cigarros, com quem compartilhar uma amizade tinha
"o efeito de um copo de vinho ou de música."
O olhar do narrador sobre Nuto é uma espécie
de espelho invertido de si próprio, a imagem do que
por vezes gostaria de ser: ele é aquele que nunca partiu,
que tem família, uma casa de onde sai um odor a lenha
fresca, flores e serradura, o adolescente que era procurado
e escutado por muita gente e que, ironicamente, não
precisou de percorrer o mundo para conhecer os seus males,
para ter um destino, consciência política (marxista)
e perceber "que o mundo foi tão mal concebido
que é preciso modificá-lo".
Mas mesmo Nuto amou em segredo. Nuto amou uma
das mulheres da Mora, a casa onde o narrador começou
a ser chamado de Enguia aos 13 anos, onde começou a
existir e aprendeu a trabalhar. A casa que era também
ela a América: havia quem vinha e quem partia. Enguia
amou quem sabia que nunca o amaria; olhou fascinado para Irene
e Sílvia, as "belas" filhas de sor Matteo:
Irene, que ele não ousara amar, tinha uns longos cabelos
loiros e tocava piano; Sílvia usava o mais belo vestido
de flores, andava com rapazes, um dia ele sonhou "que
trepava pelas suas costas lisas como se fosse um mastro luzidio"
e reviveu-a mais tarde, na América, com outra mulher.
Mas "todas as mulheres são feitas da mesma massa";
e as filhas de sor Matteo, "com o seu piano, os seus
romances, os seus chás, as suas sombrinhas, não
sabiam fazer uma vida, ser verdadeiras senhoras, dirigir um
homem e uma casa."
Tudo terminou, diz a certa altura o narrador.
Na Gaminella, as fogueiras já não são
metáfora do fim e do recomeço, do desaparecimento
do pasto seco para dar lugar às vinhas a nascer em
estado de graça. Agora a casa da infância é
um incêndio louco, a terra a devorar os seus filhos.
Sem amargura nem piedade, como a voz de Valino quando fala
dos mortos sepultados pelos bosques. Cinto será outro
bastardo, a quem Nuto vai ensinar a trabalhar e a tocar um
instrumento, mas o seu destino, pressente-se, será
um reflexo do das outras personagens. Não vale assim
a pena repetir uma história. E ouvimos a célebre
declaração de Pavese, anotada no seu diário
nove dias antes de estancar o sangue que lhe corria nas veias:
"Um imenso fastio de tudo. Basta de palavras. Um gesto.
Não escreverei mais."
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