Afirma Pereira
Antonio Tabucchi



 

O Tormento de Mudar
Por Rita Pimenta

Retrato do ambiente europeu no final dos anos 30, "Afirma Pereira" tem como cenário o salazarismo, o fascismo italiano e a guerra civil espanhola. Em Lisboa, um solitário jornalista, resignado e sem opções políticas, consegue mudar a sua atitude perante o mundo. E conta-nos como

Pereira torna-se responsável pela página cultural do diário vespertino "Lisboa". É Verão e o calendário marca o ano de 1938. O velho jornalista chama a si a tarefa de escrever a biografia de escritores famosos, para que no momento da sua morte não seja apanhado desprevenido. E assim transforma a gaveta da sua secretária na Rodrigo da Fonseca numa espécie de pré-jazigo de autores a enterrar.

É precisamente de uma reflexão sobre a morte que o livro parte e é esta que motiva o encontro do protagonista com Francisco Monteiro Rossi, o principal catalisador da mudança do jornalista que bebe limonadas.

Contratado para o ajudar na necrologia dos escritores, Rossi apresenta sempre textos impublicáveis, carregados de ideologia contracorrente, como aquele em que idolatra o revolucionário Maiakowski. Sem compreender exactamente porquê, Pereira mantém este colaborador a expensas suas, não participando ao director do "Lisboa", que é simpatizante do regime.

Monteiro Rossi acaba por confessar ao jornalista que sem Marta, a sua namorada, nunca conseguiria escrever sobre a morte, que associa ao fascismo: "Sabe o que gritam os nacionalistas espanhóis?, gritam 'viva la muerte', e eu não sei escrever sobre a morte, eu gosto é da vida, doutor Pereira, e só por mim não teria sido capaz de escrever necrológios, de falar da morte, creia-me, não sou capaz de falar da morte."

Marta e Rossi estão ligados às brigadas internacionais que combatem em Espanha do lado dos republicanos e foram encarregados de recrutar voluntários no Alentejo.

Ao identificar-se com estes jovens e ao ajudá-los, o viúvo Pereira vai reconsiderando a sua existência e vive o tormento próprio de quem sente um apelo de mudança. Uma inexplicável sensação de arrependimento já o havia assaltado: "Observava as estrias de luz e de sombra das persianas no tecto, pensava em 'Hongrine' de Balzac, no arrependimento, e parecia-lhe que também ele devia arrepender-se de alguma coisa, mas não sabia de quê."

A coragem de denunciar

Pereira vê-se então arrastado para a luta anifascista, para o que também contribuíram as conversas com o padre António, que o informa do apoio que a Igreja Católica dá a Franco. A notícia de que Claudel defende os criminosos, levando o padre a chamar-lhe "filho da puta", inquieta igualmente Pereira, que se mostra impressionado com a coragem do católico Bernanos em denunciar os crimes do franquismo na guerra civil de Espanha.

Uma vez desperto para o mundo, Pereira vai questionando de forma ainda mais aguda o seu passado. E dá-se conta de que já não fala com o retrato da mulher.

O doutor Cardoso, defensor da tese dos múltiplos eus em cada um de nós, cujo comando se alterna entre eles, convence Pereira de que o seu eu hegemónico actual é mais decidido e corajoso.

Será o trágico desfecho para Monteiro Rossi que dará o impulso final para a transformação de Pereira, que resolve denunciar as práticas violentas e ilícitas da polícia política: "Ontem à noite, quando jantava em casa do director da página cultural do 'Lisboa', o doutor Pereira, que escreve este artigo, três homens armados irromperam pela casa dentro. Declararam pertencer à polícia política, mas não mostraram nenhum documento que o confirmasse. Inclinamo-nos a excluir a possibilidade de se tratar realmente da polícia, pois estavam à paisana e porque acreditamos que a polícia do nosso país não use tais métodos. Eram verdadeiros facínoras, que actuavam com cumplicidades que desconhecemos, e seria bom que as autoridades indagassem sobre este ignóbil acontecimento", afirma Pereira. Um bom romance, afirmamos nós.