O Tormento de Mudar
Por Rita Pimenta
Retrato do ambiente europeu no final dos anos
30, "Afirma Pereira" tem como cenário o salazarismo,
o fascismo italiano e a guerra civil espanhola. Em Lisboa,
um solitário jornalista, resignado e sem opções
políticas, consegue mudar a sua atitude perante o mundo.
E conta-nos como
Pereira torna-se responsável pela página
cultural do diário vespertino "Lisboa". É
Verão e o calendário marca o ano de 1938. O
velho jornalista chama a si a tarefa de escrever a biografia
de escritores famosos, para que no momento da sua morte não
seja apanhado desprevenido. E assim transforma a gaveta da
sua secretária na Rodrigo da Fonseca numa espécie
de pré-jazigo de autores a enterrar.
É precisamente de uma reflexão
sobre a morte que o livro parte e é esta que motiva
o encontro do protagonista com Francisco Monteiro Rossi, o
principal catalisador da mudança do jornalista que
bebe limonadas.
Contratado para o ajudar na necrologia dos
escritores, Rossi apresenta sempre textos impublicáveis,
carregados de ideologia contracorrente, como aquele em que
idolatra o revolucionário Maiakowski. Sem compreender
exactamente porquê, Pereira mantém este colaborador
a expensas suas, não participando ao director do "Lisboa",
que é simpatizante do regime.
Monteiro Rossi acaba por confessar ao jornalista
que sem Marta, a sua namorada, nunca conseguiria escrever
sobre a morte, que associa ao fascismo: "Sabe o que gritam
os nacionalistas espanhóis?, gritam 'viva la muerte',
e eu não sei escrever sobre a morte, eu gosto é
da vida, doutor Pereira, e só por mim não teria
sido capaz de escrever necrológios, de falar da morte,
creia-me, não sou capaz de falar da morte."
Marta e Rossi estão ligados às
brigadas internacionais que combatem em Espanha do lado dos
republicanos e foram encarregados de recrutar voluntários
no Alentejo.
Ao identificar-se com estes jovens e ao ajudá-los,
o viúvo Pereira vai reconsiderando a sua existência
e vive o tormento próprio de quem sente um apelo de
mudança. Uma inexplicável sensação
de arrependimento já o havia assaltado: "Observava
as estrias de luz e de sombra das persianas no tecto, pensava
em 'Hongrine' de Balzac, no arrependimento, e parecia-lhe
que também ele devia arrepender-se de alguma coisa,
mas não sabia de quê."
A coragem de denunciar
Pereira vê-se então arrastado
para a luta anifascista, para o que também contribuíram
as conversas com o padre António, que o informa do
apoio que a Igreja Católica dá a Franco. A notícia
de que Claudel defende os criminosos, levando o padre a chamar-lhe
"filho da puta", inquieta igualmente Pereira, que
se mostra impressionado com a coragem do católico Bernanos
em denunciar os crimes do franquismo na guerra civil de Espanha.
Uma vez desperto para o mundo, Pereira vai
questionando de forma ainda mais aguda o seu passado. E dá-se
conta de que já não fala com o retrato da mulher.
O doutor Cardoso, defensor da tese dos múltiplos
eus em cada um de nós, cujo comando se alterna entre
eles, convence Pereira de que o seu eu hegemónico actual
é mais decidido e corajoso.
Será o trágico desfecho
para Monteiro Rossi que dará o impulso final para a
transformação de Pereira, que resolve denunciar
as práticas violentas e ilícitas da polícia
política: "Ontem à noite, quando jantava
em casa do director da página cultural do 'Lisboa',
o doutor Pereira, que escreve este artigo, três homens
armados irromperam pela casa dentro. Declararam pertencer
à polícia política, mas não mostraram
nenhum documento que o confirmasse. Inclinamo-nos a excluir
a possibilidade de se tratar realmente da polícia,
pois estavam à paisana e porque acreditamos que a polícia
do nosso país não use tais métodos. Eram
verdadeiros facínoras, que actuavam com cumplicidades
que desconhecemos, e seria bom que as autoridades indagassem
sobre este ignóbil acontecimento", afirma Pereira.
Um bom romance, afirmamos nós.
|