| Tiragem de 100 mil exemplares"Razões 
                    de Coração", de Álvaro Guerra
 Por Luis Miguel Viana
 É um livro sobre o Portugal rural, analfabeto 
                    e rude, que a primeira invasão francesa atravessou 
                    como faca em manteiga quente. A ideia de escrever o romance 
                    nasceu perante o diário de um monge escrito em 1808 Foi em Paris, onde viveu no início dos anos 70, que 
                    Álvaro Guerra começou a congeminar "Razões 
                    de Coração". É um livro concentrado 
                    no período em que a primeira invasão francesa 
                    obrigou a família real portuguesa a fugir para o Brasil 
                    no meio de uma confusão amedrontada e reles, com o 
                    príncipe Regente a chorar com o povo na hora do embarque, 
                    entre caixotes, e as tropas de Napoleão a avançarem 
                    por Portugal dentro sem um exército nacional que lhes 
                    fizesse frente.  "Eis-nos, pois, órfãos", 
                    resume, no romance, o abade Sepúlveda. "Devia 
                    ser a guerra e é a humilhação", 
                    conclui D. Beatriz de Almeida, mãe de um filho que 
                    parte a organizar guerrilhas contra o invasor, de outro que 
                    permanece no que resta do exército real português, 
                    e de um terceiro que se afirma na roda do partido francês. 
                    O essencial da história decorre em Mafra, à 
                    sombra descomunal do Palácio-Convento. É partir 
                    daqui, de onde fugiu o coração do Estado, que 
                    se avaliam e parcialmente se vivem as convulsões que 
                    percorrem o país.  Álvaro Guerra - que morreu este ano, 
                    em Abril - contou que se sentiu picado pelo bicho do romance 
                    quando, vivendo na capital francesa, o seu amigo José 
                    Medeiros lhe mostrou um calendário litúrgico 
                    de 1808 nas margens do qual se acumulavam anotações 
                    diversas: eram uma espécie de diário de Frei 
                    Pedro Taveira, um frade que abandonou o Convento de Mafra 
                    à chegada dos franceses para, umas léguas adiante, 
                    em Ribamar, se empenhar com a discreção possível 
                    na resistência ao invasor e nas operações 
                    de apoio ao desembarque das tropas inglesas. A partir do momento 
                    em que viu as notas do Frei Pedro, Álvaro Guerra começou 
                    a acumular apontamentos sobre as guerras peninsulares. Durante 
                    vinte anos recolheu informações sobre hábitos 
                    e vestuário daquele período, pesquisou elementos 
                    da história de Mafra, estudou o respectivo convento. 
                   Todo o romance testemunha, aliás, esse 
                    trabalho. Há um rigor de pormenores, uma meticulosidade 
                    nas descrições, um cuidado nas referências 
                    que, como o ritmo narrativo é muito vivo, tornam a 
                    leitura límpida, saborosa, irresistível. É 
                    uma prosa belíssima, de terna ironia para com as fraquezas 
                    individuais e colectivas, escrita num português colorido, 
                    variado, a que não falta todavia a elegância, 
                    o requinte. Há algumas ressonâncias de Saramago 
                    ("Razões de Coração" foi escrito 
                    depois do "Memorial do Convento") e uma respiração 
                    que, por vezes, recorda Camilo.  E há, naturalmente, um grande 
                    história de amor. Ela é uma fidalga portuguesa 
                    apaixonada pelas "luzes" da Revolução, 
                    ele um capitão de dragões do exército 
                    de Junot. Ela chama-se Mariana, ele Philipe. Ela luta contra 
                    o Portugal rural, realista à moda antiga, que nada 
                    sabe sobre o que vai por esse mundo e que se acobarda perante 
                    o terror jacobino. Ele debate-se com o cansaço de 14 
                    anos de guerras, caminhadas intermináveis pela Europa 
                    inteira, provações, insónias, ferimentos. 
                    "Mariana rejeita Mafra", escreve Álvaro Guerra, 
                    "e o capitão está farto da guerra. Eis 
                    a base do sonho".
    
                    
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