Quarto com Vista
E. M. Forster



 

Tiragem de 100 mil exemplares
E. M. Forster O Amor É do Corpo

"Um Quarto com Vista" é uma celebração do amor que é do corpo, também do corpo, independentemente da forma que esse amor assuma. Publicado em 1908, quando E. M. Forster tinha 29 anos, nasceu numa viagem feita sete anos antes a Itália - onde, como a protagonista do livro, Forster descobriu a luz sem reposteiros. %Alexandra Lucas Coelho

Podemos pensar em "Um Quarto com Vista" como um duelo constante entre luz e sombra. À luz (mediterrânica, da antiguidade, de Roma, da Grécia) pertence Florença, onde se passa a primeira metade do romance; pertencem a verdade, a música, o corpo, o desejo. À sombra (dos reposteiros pesados que tapam as janelas) pertence a Inglaterra provinciana da classe média, cenário de quase toda a segunda parte do livro; pertence a convenção que molda tudo, música, corpo, desejo, numa existência moderada, integrável, não ameaçadora.

Um dos (muitos) momentos do livro em que a oposição entre Itália - viva, no esplendor da criação - e Inglaterra - murcha, entre relógios e guias - se torna quase cruel é quando a protagonista do livro, Lucy Honeychurch, depara com a igreja de Santa Croce, em Florença: "Durante um momento arrebatador, a Itália apareceu. Estava na praça da Annunziata e na terracota viva viu aqueles 'putti' divinos que nenhuma reprodução barata era capaz de banalizar. Ali estavam eles com os seus membros refulgentes saindo de roupas de caridade e os seus braços brancos e fortes estendidos contra aros de céu. Lucy pensou que nunca vira nada tão belo, mas Miss Lavish, com um grito de horror, arrastou-a para a frente, declarando que estavam desviadas do seu caminho pelo menos uma milha."

Lucy Honeychurch vem da sombra, da Inglaterra dos reposteiros, onde a convenção está detalhada ao pormenor de determinar que, para uma jovem por casar que chega a uma pensão no estrangeiro, é impensável aceitar o quarto que foi de um jovem cavalheiro também ele por casar - e por aceitar o quarto, entenda-se: dormir na mesma cama.

Devidamente acompanhada por Miss Bartlett (uma prima pobre e solteirona que nunca se cansa de fazer notar como aquela viagem a Itália é um favor que lhe estão a fazer), Lucy é a que vem da sombra e se apanha na luz - em Florença e nos braços de um homem, George, que a há-de beijar num declive coberto de violetas. "Durante um momento, olhou para ela como se fosse alguém que tivesse caído do céu. Viu uma alegria radiante no seu rosto, viu as flores baterem contra o seu vestido em ondas azuis. Os arbustos por cima deles fecharam-se. Ele deu rapidamente um passo em frente e beijou-a."

Para fugir de George (mais que dele, do que sente), Lucy parte a correr para Roma. Já de volta a casa, a Inglaterra, acaba por aceitar como noivo Cecil, como quem fecha ainda mais os reposteiros, para que o sol não entre, não queime, não exponha.

Na sua forma mais aparente e romanesca, o duelo de "Um Quarto com Vista" trava-se entre este dois homens lutando pela mesma mulher: George é a luz, aquele que a beijou de rompante, entre violetas, e promete tomar-lhe o corpo sem lhe tomar os pensamentos; Cecil é a sombra, todo compostura de espírito e nenhum corpo, "do tipo que nunca pode conhecer ninguém intimamente", alguém que (como ela própria diz) imaginamos sempre numa sala.

Mas é dentro de Lucy que se trava o verdadeiro duelo - entre a verdade que se nos impõe a partir de dentro e a que nos é imposta a partir de fora -, aquele que importava a E. M. Forster, e que ele próprio travou boa parte da vida.

A primeira vista

Em 1901, Edward Morgan Foster partiu de Inglaterra para uma viagem de um ano por Itália, na companhia da sua mãe, Lilly.

Forster era então um jovem de 22 anos, recém saído do King's College de Cambridge, onde se tornara membro de Os Apóstolos, clube-elite da vanguarda intelectual, que veio a ser um dos embriões do grupo de Bloombsbury - incluindo figuras como Leonard Woolf, John Maynard Keynes, Lytton Strachey ou, mais à margem, Toby Stephen e Clive Bell, respectivamente irmão e futuro cunhado de Virginia Woolf. Cambridge fora um bálsamo para quem, como Forster, passara a infância e parte da adolescência a ser alvo de chacota dos colegas. Entre os Apóstolos - que se reclamavam da Grécia Antiga para quase tudo o que prezavam intensamente: arte, beleza, verdade, liberdade, incluindo a liberdade de gostar de rapazes - Forster encontrou-se em casa.

A Itália era a sequência naturalíssima da sua formação em Cambridge. E a mãe, Lilly, a parceira naturalíssima para essa viagem - Forster tinha apenas um ano quando o pai morreu; não havia irmãos (um, mais velho, pouco tempo sobrevivera ao parto); a mãe era, para ele, a grande presença.

Partem, pois. E não será abusivo concluir que toda a inadequação que o jovem Forster sentia face à rigidez das convenções da classe média britânica - sociais, políticas, sexuais - se lhe tornou mais evidente no deslumbrante caos italiano, em que arte e vida conviviam tão naturalmente. Assim, durante essa viagem, nasceu o primeiro esboço de "Um Quarto com Vista", que Forster só viria a concluir em 1907 (a primeira edição é de 1908).

No ambiente inglês e tacanho da Pensão Bertolini de Florença, onde Lucy Honeychurch se aloja com a sua prima mais velha, os Emerson (George e o seu pai) personificam tudo aquilo que poderão ser os ingleses quando libertos da sua sombra - e que o próprio Forster gostaria de ter sido mais, ou mais cedo.

Tem sido sugerido que a personagem do Emerson pai terá sido inspirada em Edward Carpenter, um pioneiro na defesa da igualdade entre os sexos e na livre expressão do amor homossexual, que Forster admirava. Emerson pai é aquele que diz a Lucy: "Não se controle. Saia das profundezas desses pensamentos que não compreende e estenda-os ao sol para saber o que significam."

Da mesma forma, tem sido apontado que George, o Emerson filho - o que desperta o desejo em Lucy - tomou como modelo H. O. Meredith, um brilhante estudante de Cambridge por quem Forster esteve apaixonado - e a quem "Um Quarto com Vista" é expressamente dedicado.

Há mesmo quem tenha lido o romance como uma celebração ainda disfarçada do amor homossexual, antes dessa celebração sem equívoco que veio a ser "Maurice", um romance escrito seis anos depois, e que só veio a ser publicado em 1971, no ano a seguir à morte de Forster.

A cena mais citada, nas interpretações que sublinham a homossexualidade subliminar no livro, é a do banho que George, Freddy (o irmão mais novo de Lucy) e o clérigo Beebe tomam no charco a que chamam Lago Sagrado: "Os três homens giravam na lagoa até ao peito, como as ninfas no 'Crepúsculo dos Deuses' [...] Correram para se secarem, banharam-se para se refrescarem, brincaram aos índios nas salgueirinhas e nas urzes, banharam-se para ficarem limpos. E todo esse tempo, três pequenos montículos [de roupa] estavam discretamente na relva, proclamando: 'Não. Nós somos aquilo que importa. Sem nós nada pode começar. A nós toda a carne tem de voltar no fim.'"

É difícil saber o que Forster teria preferido que se dissesse. Certo é que "Um Quarto com Vista" é uma celebração do amor que é do corpo, também do corpo, independentemente da forma que esse amor assuma. E que Lucy é uma personagem também com corpo percebe-se a primeira vez que ela se senta ao piano para tocar Beethoven: "Estava embriagada pelo simples contacto com as notas: eram dedos acariciando-se a si próprios, e pelo tacto, não apenas pelo som, ela chegava ao seu desejo." Diz-lhe o sábio clérigo Beebe, ainda antes do duelo dentro dela se ter decidido: "Se Miss Honeychurch alguma vez decide viver tal como toca, será muito excitante... tanto para nós como para ela."