"Oito
Mulheres" Girl Power
Por Vasco T. Menezes
Em "Oito Mulheres", François Ozon envolve várias gerações do
"star-system" francês pelas cores exuberantes da Hollywood dos
anos 50. Resultado: uma divertida (e muito "kitch") brincadeira
cinéfila, entre o musical, a farsa e o policial
François Ozon é um caso estranho. Se a sua capacidade
de trabalho - os filmes sucedem-se a uma velocidade impressionante
(só para se ter uma ideia, este ano terminou "Swimming Pool",
ainda inédito entre nós, e já está a
rodar o sucessor, "5x2"...) - é deveras surpreendente, a
versatilidade que demonstra não o será menos. Desde
a longa-metragem de estreia, "Sitcom" (1998), o realizador tem-se
passeado, durante uma ainda curta carreira, pelos mais diversos
géneros e estilos, tornando a sua catalogação
um exercício de considerável dificuldade. Tanto é capaz
de, num momento, assumir sem complexos a leveza (por exemplo, "Sitcom"),
como de, logo a seguir, se deixar tolher pela gravidade ("Sob a
Areia", de 2000).
"Oito Mulheres" (2002), a sua quinta longa-metragem e um divertimento
puro, cai com facilidade no primeiro campo. O filme acaba por resultar
na concretização de um capricho (ou tentativa de
proeza?) de Ozon: juntar, no mesmo "plateau", uma série
de estrelas do cinema francês - da veterana Danielle Darrieux às
novatas Ludivine Sagnier e Virginie Ledoyen, passando por Catherine
Deneuve, Fanny Ardant, Isabelle Huppert ou Emmanuelle Béart
- e esperar que a mistura explosiva dos egos das vedetas não
descambasse em catástrofe. Em seguida, embrulhou-as em guarda-roupas
vistosos, envoltas pelo "technicolor" espampanante do melodrama
clássico americano, e fechou-as dentro de uma casa, com
o cadáver de um homem, faca espetada nas costas, num dos
quartos. A pergunta inevitável: qual delas matou?
"Fiz este filme para meu prazer"
Por aqui se percebe logo que "Oito Mulheres", adaptação
de uma peça de "boulevard" de Robert Thomas, não é apenas
um divertimento. O filme é antes uma brincadeira cinéfila
que, à memória da Hollywood dos anos 40/50 e dos
universos cinematográficos a que estão associadas
as actrizes escolhidas - por exemplo, Ophüls (Darrieux), Resnais
(Ardant), Truffaut (Deneuve e Ardant), Chabrol (Huppert), Demy
(Darrieux e Deneuve), Sautet (Béart) ou Godard (Huppert)
-, junta também o "quem matou" à Agatha Christie.
Se tivermos ainda em conta que, para compor o ramalhete, Ozon deixa
pairar, ao lado das outras estrelas, o fantasma (através
de uma fotografia) de Romy Schneider - "a minha actriz favorita
quando era miúdo", disse o realizador em tempos -, e as
põe a todas a cantar e dançar as suas melodias preferidas
da "chanson française" - de Dalida a Françoise Hardy,
passando por Sylvie Vartan -, percebe-se facilmente a confissão
do jovem prodígio francês: "Fiz este filme para meu
prazer".
No entanto, o filme consegue afastar as sombras nefastas da "private
joke", pois não será necessário ser-se cinéfilo
inveterado para se poder desfrutar dele com enorme prazer. Ou seja,
o que Ozon tem para oferecer não se esgota na mera citação
pela citação. A inteligência que por aqui passa
está bem à vista desde o primeiro momento.
O genérico explicita imediatamente algumas das matrizes
confessas: o brilho dos cristais do lustre com que abre remete
para as pedras preciosas do início de "Imitação
da Vida" (1959), de Douglas Sirk, e a associação
de cada uma das intérpretes a uma flor (e todas de cor diferente)
convoca o clássico de George Cukor, "As Mulheres" (1939),
em que essa correspondência se fazia através de diversos
animais.
Logo a seguir, o primeiro "travelling" mostra-nos uma casa circundada
pela neve (que não vai deixar nunca de cair), ao lado da
qual surge um dócil veado, numa alusão transparente
ao final de outro melodrama de Sirk, "O Que O Céu Permite" (1956).
Em seguida, quando entramos na casa onde toda a acção
se vai desenrolar e vamos sendo apresentados às personagens,
apercebemo-nos da exuberância cromática do vestuário
e adereços, sinal óbvio de que o que vem a seguir
se desenrolará nos terrenos do "kitsch" e "camp" (vem-nos à cabeça
o rosa choque das letras do genérico e, acima de tudo, "Sitcom",
que não era senão uma homenagem ao "Papa do mau gosto",
John Waters).
Ozon, "cineasta das mulheres"?
Tudo isto não passaria de engenhosa cinefilia se estas
referências não servissem também para introduzir,
de forma clara mas subtil, os temas do artifício e fingimento,
que dominarão todo o filme. É de teatralidade (em
vários sentidos) que se fala aqui e não é por
acaso que, num assumir das suas origens enquanto peça de
teatro, "Oito Mulheres" termina com as actrizes voltadas para a
câmara (para nós?) de mãos dadas, como se estivessem
num palco, prestes a fazer a vénia ao público.
"Enquanto homem, é mais fácil identificarmo-nos
com o sexo oposto, contarmo-nos através das mulheres", disse
Ozon, a propósito do elenco (quase) exclusivamente feminino.
Então (e recordando as referências convocadas, não
só Cukor e Sirk, como também Fassbinder, discípulo
do segundo, ou Almodóvar), podemos perguntar: François
Ozon, "cineasta das mulheres"? Apenas no sentido em que elas, de
facto, têm estado no centro do seu cinema.
Mas se o fascínio é indisfarçável,
a misoginia também, algo que em "Oito Mulheres" é mais
uma vez confirmado: aqui, as mulheres passam o tempo a mentir,
a trapacear e a acusarem-se umas às outras do assassinato
do "único homem da casa" (de resto, a ausência do
homem, de um modo ou outro, é um tema central na obra de
Ozon), à medida que o rol dos seus segredos (uns maiores,
outros nem tanto) se vai desvelando, graças a uma série
de reviravoltas (é o elemento policial da questão).
Se é um facto que para o realizador elas são mais
fortes do que eles, a verdade é que, e para dar apenas três
exemplos, a avó alcoólica de Darrieux e a quarentona
metediça e neurasténica de Huppert ou a criada ridiculamente "vamp" de
Béart não são propriamente personagens-modelo
(a sátira social também passa por aqui e nem a burguesia,
nem o proletariado, saem incólumes). E não será por
acaso que a única a escapar ao olhar impiedoso do realizador
seja a "bebé" Ludivine Sagnier, inocente e pura, rapariga
ainda a caminho de se tornar mulher...
Ozon tem sido descrito como "perverso" e, de facto, não
será difícil imaginar o prazer que terá sentido
ao colocar as suas divas a humilharem-se, a morderem-se, a puxarem
os cabelos e a atirarem-se umas às outras (a "pièce
de résistance" é mesmo a "luta de gatas" entre Deneuve
e Ardant, que termina num longo beijo entre as duas...).
Mas esse lado de "provocação" não é tudo,
pois há que contar ainda com a atmosfera de sensualidade
ofegante que se desprende de todo o filme, as actrizes em estado
de graça, a elegância do humor e a destreza com que
Ozon trabalha o "huis clos". É na capacidade de reunir todos
estes elementos (à partida) díspares num tom coerente
que reside o charme de "Oito Mulheres", objecto inclassificável
que, apesar de não ser o melhor Ozon, é pelo menos
um dos mais divertidos. |