A
Barca do Inferno
Por Carlos Câmara Leme
A adaptação do romance de José Cardoso
Pires por um dos pioneiros do Cinema Novo português
Portugal, finais da década de 60. Na aldeia da Gafeira
existe um só senhor: o engenheiro Tomás Palma Bravo
(Rogério Samora), dito o Delfim, o Infante. É ele
o herdeiro de um mundo em decomposição e de um domínio
que se perde nos tempos, que inclui a lagoa, terreno propício
para a caça e muito apreciado pelos que têm o privilégio
de cair nas boas graças de Tomás.
A sua mulher, Maria das Mercês (Alexandra Lencastre), vive
quase em reclusão, impedida de se deslocar livremente para
fora da casa familiar, isolada do mundo exterior. Estéril,
é apenas uma entre o rol de propriedades exclusivas do Delfim,
ao lado de Domingos, o criado negro, do cão e do belo Jaguar
E (elemento indispensável nas suas frequentes visitas às
prostitutas da capital.)
Quando o “Doutor” (Rui Morrison), um dos amigos e companheiros
de caça de Tomás, regressa à aldeia, um ano
depois de lá ter estado pela última vez, é
informado pelos habitantes da Gafeira do drama que ocorreu inesperadamente
numa noite: Domingos apareceu morto na cama do casal Palma Bravo
e Maria das Mercês foi encontrada a boiar na lagoa. Quanto
ao Infante e ao seu cão, desapareceram para nunca mais serem
vistos por aquelas paragens...
“O Delfim” (2002) é a adaptação de Fernando
Lopes do romance mítico (e um dos mais importantes da ficção
contemporânea portuguesa) de José Cardoso Pires, com
argumento de Vasco Pulido Valente (no qual colaboraram também
o realizador e Maria João Seixas). Uma das figuras principais
do chamado Cinema Novo português – são dele clássicos
como “Belarmino” (1964) ou “Uma Abelha na Chuva” (1972) –, Fernando
Lopes já não filmava para cinema desde “O Fio do Horizonte”
(1993).
No entanto, segundo o realizador, essa experiência devolvera-lhe
“a vontade de fazer cinema”. Algo que foi finalmente concretizado
neste regresso, quase dez anos depois, ao grande ecrã, com
um filme que, se por um lado remete para o clima de “policial metafísico”
do seu antecessor, por outro não deixa de estabelecer também
paralelismos e rimas óbvias com “Uma Abelha na Chuva”, em
especial devido à familiaridade temática entre ambos:
a infertilidade feminina a ensombrar o destino de homens representantes
de um mundo crepuscular.
O resultado é uma obra admirável, retrato do fim
de um tempo – o do Portugal salazarista, ainda mais rural do que
urbano, de há 30 e poucos anos –, em que o cineasta decidiu
“finalmente eleger os actores como elementos principais”. Teve como
recompensa (e nós com ele) duas interpretações
notáveis de Rogério Samora e Alexandra Lencastre,
um par em estado de graça, a dar corpo a fascinantes personagens
“bigger than life”.
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