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SerieY 2
"O Delfim"
 

A Barca do Inferno
Por Carlos Câmara Leme

 

Com base num dos mais fascinantes livros da literatura portuguesa contemporânea - "O Delfim", José Cardoso Pires-, Fernando Lopes realizou um filme escorreito, marcado por belíssimas interpretações, em que o jogo da ambiguidade seduz tanto como na obra do romancista.

 

Quando, em 1968, veio a lume "O Delfim", na Moraes Editores, José Cardoso Pires (1925-1998) era já um autor reconhecido. Na bagagem tinha livros de contos, uma peça de teatro ("O Render dos Heróis") e um romance com que foi distinguido com o Prémio Camilo Castelo Branco: "Hóspede de Job".

 

Porém, foi com "O Delfim" - para muitos considerada a sua "opus magnum" - que passaria a ocupar um lugar na segunda metade da ficção portuguesa contemporânea. Quer a crítica nacional como a internacional o assinalaram: se no Porto a obra é apresentada por Óscar Lopes, lá fora o "The Times Literary Supplement" dedicava-lhe uma página, enquanto o "Le Monde", a "Quinzaine Littéraire" e o "Le Nouvel Observateur" seleccionavam o livro "entre os melhores romances estrangeiros" de 1970.

 

Oriundo do neo-realismo, como a maior parte dos seus companheiros de escrita, Cardoso Pires, com "O Delfim", explora os caminhos da linguagem interseccionista numa prosa rigorosa, em que a reinvenção da língua é fortíssima. À imagem da reflexão auto-irónica e ao mesmo tempo lúcida que o escritor faz de si próprio ("Nenhum escritor gosta de complicar seja o que for, e ainda menos de simplificar. A certeza do golpe está nesse rigor"), "O Delfim" é uma máquina de relógio fabulosa.

 

No entanto, sempre que o leitor vira a última página, fica com a sensação de que algo lhe escapou: livro cinematográfico - o romancista chegou a trabalhar num adiantado guião para cinema -, com um narrador "cineasta" à procura dos seus enquadramentos, observações, reconstituição de estórias, ora com traços luminosos, ora com traços que ficam na sombra. Na adaptação para cinema de "O Delfim" (2002), Fernando Lopes segue no fundamental - com o certeiro argumento de Vasco Pulido Valente - a obra de Cardoso Pires.

 

No Portugal de há 30 anos

Estamos num Portugal de há 30 anos, quando o salazarismo agonizava. O microcosmos da Gafeira (como será mais tarde a Lisboa de "Alexandra Alpha", 1987), retrata o melhor e o pior de um país rural, da sua burguesia, dos poderes e das classes que gravitam à volta da aldeia. Além do "infante" Palma Bravo, há a omnipresença do padre, do regedor - o cacique local.

 

É sob este pano de fundo que o drama rapidamente se instala (e a música de Marcos de Portugal ainda o acentua mais): as mortes de Domingos e de Maria das Mercês, a partir da pergunta feita pelo cauteleiro ao caçador/narrador se tinha visto o "infante" por Lisboa, e da sua sentença: "Um crime."

 

Num jogo de ambiguidade, onde não há "a verdade", as verdades vão sendo expostas: as do cauteleiro (José Pinto, num portento de interpretação), uma espécie da voz do dono do povo, as da estalajadeira (Márcia Breia) e as que, no seu caderno de notas, vai tomando o caçador-narrador, Rui Morisson (numa interpretação sóbria mas eficaz). No âmago da história, a dupla Rogério Samora (Tomás da Palma Bravo) e Alexandra Lencastre (Maria das Mercês), em interpretações poderosas de rigor e contenção.

 

O jogo de desejo e repugnância é dado por uma câmara atenta que, mais do que julgar, tenta perceber os mecanismos que fazem com que Tomás da Palma Bravo e Maria das Mercês vivam sob o mesmo tecto. E, uma vez mais, há algo que nos escapa...

 

Perante o fim que pressente iminente, Tomás tenta seduzir Domingos (um outro "delfim" para além daquele que nunca nascerá?) projectando nele os seus modos de vida: as idas a Lisboa, o álcool, as prostitutas. Porém, tudo se afunda no horror quando, numa das cenas mais bem conseguidas do filme, chega a casa embriagado, deita-se na cama e dá com o corpo de Domingos. Já não há (metáfora da) lagoa que o possa salvar - e, mesmo que já depois da tragédia esteja a caminho da Gafeira, como sustenta o padre (Miguel Guilherme, noutra interpretação digna de registo), sabe a terra que pode, ou não, pisar. À "Barca do Inferno", como resume da sua janela o narrador-escritor, sobrepõe-se quase no fim do filme uma imagem de um anjo fugidia, enquanto se soltam foguetes no ar.

 

Mas até que ponto a passagem para cinema funcionou? A professora da Faculdade de Letras de Lisboa e uma das especialistas na obra de José Cardoso Pires, Maria Lúcia Lepécki, julga que "a eficácia e a beleza de uma versão cinematográfica do livro de Cardoso Pires dependia absolutamente de se virar o bico ao prego de um traço crucial da escrita de 'O Delfim' - o jogo entre o centramento da história no engenheiro (e no escritor-narrador que a conta) e a dispersão por referências outras, de todo o tipo e provindas dos mais variados lugares e tempos", além "da dimensão metafórica, um desmultiplicar-se e encavalitar-se de sentidos trasladados, problema nada simples de se resolver em ecrã".

 

Na opinião de Maria Lúcia Lepécki, autora de um dos ensaios mais estimulantes sobre a temporalidade antropológica em "O Delfim" ("Sentido que a Vida Faz. Estudos sobre Óscar Lopes", Porto, Campo das Letras, 1997), "Fernando Lopes e Vasco Pulido Valente centraram a história no engenheiro e na sua mulher, dando maior eficácia dramática aos outros sentidos (políticos, ideológicos, históricos e, não se pode esquecer, 'pessoais') que Cardoso Pires inscreve no casal primorosamente revivido por Rogério Samora e Alexandra Lencastre".

 

A ensaísta gostaria de uma "maior presença do escritor: os temas da escrita e do testemunho enquanto 'interpretação' são indissociáveis da história do engenheiro e, através dela, do retrato que o escritor faz de si mesmo, de um país e de uma época". Isso não ofusca o essencial: "Fernando Lopes ofereceu-nos, com o seu 'Delfim', um filme cuja comovente beleza mais uma vez nos leva ao rosto e à voz do escritor que, no século XX, com mais lúcida paixão remexeu as feridas da simbólica e da auto-imagem do povo português."