Tarantino, o Samurai
Por V.T.M. (PÚBLICO)
Em "Kill Bill", actualmente em rodagem,
o realizador de "Jackie Brown" olha de novo para os anos
70, num tributo aos filmes asiáticos de artes marciais. Depois
de Travolta e Pam Grier, outro "morto" "ressuscita",
David Carradine.
Houve uma época em que Quentin Tarantino
parecia ter o dom da ubiquidade, entre filmes, argumentos, produções
e participações como actor em vários filmes
(demasiados...), muitos de qualidade dúbia. Percebendo os
efeitos nefastos de uma possível sobreexposição,
nos últimos cinco anos manteve um registo mais discreto.
Algo prestes a terminar, agora que a rodagem do seu quarto filme,
"Kill Bill", já vai a meio.
A ideia para o filme surgiu de uma conversa, a altas
horas da noite, entre Tarantino e Uma Thurman, enquanto filmavam
"Pulp Fiction". A história é simples: uma
assassina profissional retirada e grávida (Thurman, referida
apenas como a Noiva, num papel escrito de propósito para
ela, o que levou o realizador a adiar o filme durante um ano devido
à gravidez da actriz) é vítima, no dia de casamento,
de uma tentativa de assassinato por parte do antigo chefe e namorado,
Bill (David Carradine). Após cinco anos em coma, acorda decidida
a vingar-se, ocupando-se primeiro das ex-colegas, um trio de assassinas
estilo "Anjos de Charlie" - Daryl Hannah, Lucy Liu e Vivica
A. Fox - liderado por Michael Madsen (o Mr. Blonde de "Cães
Danados"), deixando Bill para o fim. Uma mulher zangada...
Se o resumo se aproxima dos filmes do género
"vingança de uma mulher" é porque "Kill
Bill" se inspira livremente numa obscuridade sueca do cinema
"sleaze", "Thriller" (1973), a história
da vingança de uma rapariga muda (violada em criança)
contra os que a transformaram numa drogada e a obrigaram a prostituir-se
para pagar o vício. As semelhanças são óbvias
(mas presume-se que as cenas de sexo "hardcore" não
tenham sido revisitadas...) e até a pala no olho da protagonista
foi recuperada, na personagem de Daryl Hannah. Mas não é
só das memórias do ciclo "rape and revenge"
que vive um filme que, segundo o autor, é "um concentrado
de 30 anos de 'exploitation'" - também lá estão
os filmes "gore" italianos e, acima de tudo, os filmes
de samurais e de kung fu dos anos 70.
Pressente-se que neste projecto Tarantino porá
à vista todas as suas obsessões e ele confirma-o:
"Estou a fazer este filme para mim". Ou seja, bulimia
cinematográfica, sangue e violência. Só numa
sequência, Uma Thurman dizima 76 adversários... "Quero
que seja para as lutas de kung fu o que a cena da 'Cavalgada das
Valquírias' de 'Apocalypse Now' foi para as cenas de batalha",
avisa Quentin.
O fascínio do cineasta pelo cinema de artes
marciais é tal que decidiu fazer o filme "à maneira
chinesa". Por isso enviou ao director de fotografia uma lista
de clássicos do género e recusou efeitos digitais,
em favor dos métodos mais tradicionais do lendário
realizador Chang Cheh: preservativos cheios de sangue falso que
os actores têm de rebentar... Além disso, contratou
o mestre Woo-ping Yuen (de "O Tigre e o Dragão")
para coreografar as cenas de acção e ofereceu ao ícone
japonês Sonny Chiba (vedeta dos filmes "Street Fighter"
nos anos 70 e já homenageado pelo realizador em "True
Romance") um pequeno papel. Chiba é também o
treinador de Thurman, que em "Kill Bill" veste o fato
de treino amarelo utilizado por Bruce Lee no seu último filme,
"Game of Death"...
O filme, com estreia prevista para Outubro, marcará
ainda o reencontro, aos 66 anos, com outra estrela dos anos 70,
David Carradine (filho de John e meio-irmão de Keith), depois
de ter passado as últimas duas décadas perdido em
produções de série Z destinadas ao mercado
de vídeo. É mais um fantasma do passado convocado
por Tarantino, depois de John Travolta e Pam Grier, mas desta vez
esteve quase para não acontecer: a primeira escolha foi Warren
Beatty, que acabou por desistir e sugerir Carradine, talvez por
se lembrar de Caine, o monge Shaolin que vagueava descalço
pelo Oeste americano na mítica série "Kung Fu"...
|